eu aceito o caos
por Caroline Ricca Lee
“Descartes em memorabília: Reflexões temporárias e doloridas feitas com objetos inanimados, lixo e sentimentos”, 2016. Papel, linha, clipes, band-aid e sangue.”
[Eu aceito o caos.
Não como desculpa, ou efeito colateral,
Mas como processo;
como caminho]
Minha criação consiste em têxteis e linhas — vestíveis ou não — que buscam pensar o corpo como um lugar de construção identitária.
A roupa e seu intercâmbio com a arte, o indivíduo híbrido, memória, identidade, raça, gênero, interseccionalidade, diáspora, fronteiras, sexualidade e feminino, alinhavam-se em uma única tessitura de expressão através de tecidos, bordados, teares, costuras à máquina, costuras à mão, colagens, fotografias, em obras tridimensionais e bidimensionais, que muitas vezes usam meu próprio corpo — ou de terceiros — como suporte.
Tudo parte de uma sensação-reflexão como fio condutor e catalisador da pesquisa. A pesquisa é essencial para fomentar contexto, assim vou acumulando em cadernos textos, excertos de livros, fotos antigas, escritas próprias, pedaços de tecidos, linhas emaranhadas, imagens diversas e outras matérias.
Vejo meu processo criativo como algo que é caótico (e isso permite o trabalho com várias mídias ao mesmo tempo), é não-linear (e essa falta de linearidade expande as possibilidades ao múltiplo), e é cheio de ruídos (o que cria uma imensa malha de referências e insights). Demorei para encontrar paz com esses sistemas, pois por muito tempo acreditei que o único jeito de vingar na vida era através do mito da produtividade linear, metódica e industrial capitalista. Até hoje uma voz interna às vezes ressoa cobrando ordem. Mas fui criando uma “metodologia do caos” para trabalhar de maneira mais genuína comigo mesma.
Aliás, essa relação de pacificação com o caótico é também uma sinergia com a cidade e suas pulsações viscerais.
Acredito que criatividade é um misto de quanta porosidade você têm à sua volta, quanto sua pesquisa é constante, quanta mão na massa você coloca, e como seu entorno te alimenta. Todos são processos em multimeios, e quanto mais conseguirmos deixar a obra isenta das etiquetas auto-determinadoras pela maioria, ou juízo de valor, mais verdadeiro o discurso pode se tornar.
Não existe algo como cultura boa ou ruim, arte boa ou ruim, tudo depende do público, vetor, tempo, e capital disponível. Tudo depende do que assumimos como artistas e como pessoas. Assim, constantemente volto à reflexão: “o que isso tem a ver com minha criação? o quanto isso é genuíno para mim mesma? qual a relação disso com o contemporâneo?”, e se tiver sentido, mergulho fundo.
“A subversão está à disposição em toda parte, principalmente nas relações entre arte e cidade e indivíduo.”
A empreitada na Meio-Fio’17 já está sendo uma ebulição de encontros inspiradores, fricção de expertises, aprendizados mútuos, aguçamentos criativos, métodos ritualísticos e urbanos para expansão da consciência (a la Abramović meets Ianês), alimentos para o olhar, fomento de repertórios, empatia na vocalização, acolhimento como indivíduos. Além de amor e bons drink, sempre.
O que virá? Muito caos organizado, pois a bagunça já está instituída no encontro de criativos dentro da cosmópole. Mas principalmente, vejo a intensidade da crueza— quando há uma urgência de exacerbar o âmago, o além da superfície, ou mesmo o além do [re]conhecido— , a importância da catarse— afinal, este rito urbano de passagem têm como objetivo a subversão de nós mesmos— e a potência do genuíno, pois cada qual com seu transbordante existir e discurso engasgado trará à tona aquilo considerado como verdadeiro em sua proposição. Sejam verdades urgentes e doloridas, ou utópicas e imaginadas, individuais ou de toda uma sociedade, é o que pulsa, movimenta, e desperta, à todos nós.
Caroline Ricca Lee é artista brasileira sino-japonesa. Ela se aventura entre artes visuais, movimentos em pról de mulheres asiáticas e costura freestyle.
Para saber mais, siga o Instagram do @meiofio