Por Larissa Roviezzo*
Em países desenvolvidos, geralmente, o descarte de roupas indesejadas é feito em “lixos de roupas”, que são enviados para centros de seleção que as redirecionam. Nesse contexto, pequenas quantidades de roupa são revendidas por instituições de caridade e lojas de second hand (segunda mão ou, popularmente, brechó) no próprio país, enquanto o resto é exportado para países em desenvolvimento, sendo estes os principais importadores as nações africanas e asiáticas.
A roupa barata que entra nesses países é revendida no mercado local a preços acessíveis para a população, mas isso consequentemente afeta gravemente o crescimento econômico da indústria têxtil interna. Parece incrível mas, mesmo que os países africanos sejam produtores de algodão e têm capacidade de manufatura têxtil, o produto final importado é vendido por um menor preço do que o desenvolvido no próprio país.
Uma pesquisa recente publicada pelo CUTS International (Consumer Unity & Trust Society) revelou que o algodão produzido na Comunidade da África Oriental (EAC) é tecido e convertido em vestuário na Ásia e enviado para os Estados Unidos e Europa para ser usado, em média, por dois ou três anos. Depois, é enviado de volta à EAC como vestuário de segunda mão usado por até 70% da população africana. Em outras palavras, o que é considerado descartável para alguns, é primeira opção para muitos.
Com o objetivo de promover o crescimento da indústria têxtil local, a EAC apresentou uma proposta de lei para banir a importação de roupas usadas a partir de 2019, o que é passível de discussão porque, afinal de contas, a atual realidade é consequência de decisões políticas e comerciais. Além disso, é necessário frisar que o impacto social e cultural é grande. A falta de valorização interna ameaça técnicas tradicionais de artesanato que contribuem para a identidade cultural local e o desenvolvimento da comunidade.
Enquanto isso, roupas que não podem ser reutilizadas são recicladas mecanicamente, geralmente a partir do processo “downcycling”, virando matéria-prima para indústrias de materiais de limpeza, de geotêxteis, entre outras. Esse processo é comum na Índia, por exemplo, um dos países com o trabalho de reciclagem têxtil mais expressivo do mundo.
No Brasil, a jornada das roupas descartadas não é bem esclarecida. Apesar de existir a cultura de doar roupas para instituições, infelizmente nosso processo de descarte têxtil ainda não é bem organizado.
Por um lado temos a cultura do brechó, onde na perspectiva do impacto ao meio ambiente, optar por uma roupa já usada significa preservar o uso de água, diminuir a quantidade de produtos químicos, de matéria-prima e energia, e, principalmente, não contribuir para mais lixo em aterros.
As peças encontradas em brechós, não necessariamente vintage ou baratas, representam uma cultura que já está bem estabelecida no país, mas poderia ganhar ainda mais adeptos. Ganhando mais âmbito no mercado brasileiro, talvez motivada pela a recente situação econômica, a mudança de hábitos e consumo já faz parte do contexto atual da moda. Projetos que possibilitam essa realidade, como a troca de roupas organizada pelo Projeto Gaveta e Trocaria, são alguns dos sinais de uma mudança de costume.
Silenciosamente, a prática de abrir mão da posse exclusiva de alguns produtos específicos já está inserida no nosso cotidiano há bastante tempo. Alugar vestidos de festa é um ótimo exemplo, pois mostra que, para usufruir de um bem, nem sempre a posse é necessária.
Mas porque o mercado de segunda mão ainda se distancia da indústria da moda como se existisse uma certa hierarquia? A partir do momento em que comprar uma peça nova se tornou extremamente barato (fast fashion), o reuso de roupas perdeu ainda mais espaço para o consumo do novo.
Mesmo que o consumidor se adapte cada vez mais à roupa de segunda mão, a verdade é que existe uma indústria que precisa continuar produzindo e consumidores que desejam comprar ao mesmo tempo que há a necessidade de diminuir o impacto de nossas ações. A grande questão é como convencer uma indústria que gera bilhões de dólares por ano a acreditar e investir em um projeto a longo prazo que consiste em juntar um pouco de tudo isso – consumo do novo, reuso e reciclagem de roupas.
O recente relatório “A new textiles economy: redesigning fashion’s future” ( “A nova economia têxtil: recriando o futuro da moda”) publicado no último dia 28 pela Fundação Ellen Macarthur em parceria com a H&M, Nike e Fundação C&A , mostra que o aumento da reciclagem representa uma oportunidade para a indústria reaver mais de US$ 100 bilhões em materiais perdidos pelo sistema todos os anos, reduzindo o impacto negativo do descarte.
O documento, que tem como objetivo incentivar a economia circular como novo futuro da moda, cita a importância de estimular a demanda por materiais reciclados e a necessidade de aumentar a coleta de roupas e investir em tecnologias de reciclagem. Esse objetivo comum para a indústria da moda global pode ser melhor estimulado a partir do uso canais de comunicação da cadeia têxtil e da criação e participação de organizações políticas.
Cyndi Rhoades, fundadora da start-up WornAgain e que atualmente colabora com H&M e o Grupo Kering, trabalha no desenvolvimento tecnológico para separar e recuperar poliéster e algodão e reintroduzi-los na cadeia de suprimentos como novas matérias-primas. Para Cindy, “já temos roupas o suficiente para satisfazer nossa demanda anual de novas matérias-primas para novas peças – tudo o que temos a fazer é garantir que não acabe no aterro, e, além disso, processos como o nosso precisam ser incentivados o mais rápido possível”.
Sendo assim, fica o convite para a indústria têxtil brasileira conduzir discussões em torno deste tema. O processo de reciclagem têxtil ainda enfrenta obstáculos a fim de chegar à perfeição do resgate das fibras. Mas a verdade é que com a atual tecnologia, esse cenário já pode mudar drasticamente.
Inovação na moda hoje é, sem dúvidas, a real aplicação da sustentabilidade em vários âmbitos. Por isso, cada vez mais cresce o número de iniciativas e empresas que lideram processos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico para reutilizar e recuperar o que já temos. É preciso aceitar que, involuntariamente, aquela camiseta velha doada com boa intenção também pode atrapalhar o crescimento e a cultura de outros países.
OBS: Fotos do livro Pèpè, pelo fotógrafo Paolo Woods. O livro retrata a realidade das roupas de segunda mão no Haiti e o fato de ser cada vez mais difícil ver um haitiano usando algo que não foi usado anteriormente por um americano. A maioria dessas “pèpè”, como as roupas são chamadas pelos locais, foram recusadas pelas cadeias de varejo de segunda mão americanas.
* Larissa Roviezzo mora em Berlin e é mestre em sustentabilidade na moda. É formada em design de moda, com experiência em marketing e desenvolvimento de produto.