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    FFW #43: A importância de resistir
    FFW #43: A importância de resistir
    POR Redação

    *Resistir.

    Por João Lourenço para a FFW #43

    Após a eleição de Trump, um ensaio da escritora Toni Morrison começou a circular nas redes sociais. Em Não há lugar para auto-piedade, não há espaço para medo, Morrison, a primeira escritora negra a receber o prêmio Nobel de Literatura, diz que estamos vivendo tempos sombrios. E afirma que, agora, mais do que nunca, os artistas não podem ficar calados: “Este é precisamente o momento em que os artistas precisam trabalhar. Não há tempo para desespero ou silêncio. Nós falamos, nós escrevemos, nós criamos linguagens. É assim que as civilizações se curam”.

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    Este ano, durante o período de premiações — Globo de Ouro, Oscar, Grammy — o famoso “who are you wearing?” perdeu espaço para os discursos políticos. De Jennifer Lopez a Meryl Streep, artistas dos mais diferentes matizes seguiram o apelo de Morrison e tomaram posição em assuntos que, até então, não eram discutidos em eventos desse tipo: liberdade de expressão, direitos civis, causas LGBT e feminista, racismo, sexismo etc.

    A inquietação que paira no ar não permite mais que o artista silencie. Esse “movimento de resistência” ganhou rostos de fácil identificação. Mas não agrada a todos. Muitos defendem que não se pode politizar tudo, que é preciso separar entretenimento e cultura de política. Mas quando a injustiça prevalece, a resistência se torna dever — para o artista, para mim, para você.

    ***

    Trump ofende quem o critica. Intimida quem o desafia. Desqualifica notícias contrárias a ele chamando-as de fake news.

    Desde a transição de poder nos EUA, em janeiro, esquerda e direita discutem os rumos da primeira emenda: a tal liberdade de expressão atravessa um período vulnerável. Atletas, comediantes, âncoras de TV e artistas em geral são perseguidos, quase diariamente, pelo governo Trump.

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    Mas o ressurgimento dessa onda conservadora e reacionária não se restringe aos EUA. Desde a queda do governo da presidente Dilma, “bolsominions” e grupos de extrema direita ganharam força e espaço por aqui. As mesmas pessoas que bateram panelas e defenderam a intervenção militar agora ajudam a promover um discurso de ódio e intolerância. Tudo em nome da “moral e dos bons costumes da família brasileira”.

    Discussões sobre diversidade são proibidas por lei. Também conhecida como “Lei da Mordaça”, a Lei da Escola Livre proíbe que professores e funcionários de escolas adotem qualquer conduta em sala de aula que induza os alunos a opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas. E o que fazer com os professores de sociologia ou filosofia? É um contra-senso que nem Kafka imaginaria.

    A morte do pluralismo não para por aqui. Temos presenciado ataques contra museus e exposições. O caso mais chocante foi o fechamento da exposição “Queermuseu — Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, em Porto Alegre. A mostra reunia obras de 85 artistas (Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Adriana Varejão, entre eles). Os conservadores alegaram que a exposição fazia apologia à pedofilia e zoofilia. O fechamento da mostra gerou um efeito dominó que atingiu outras atividades culturais no país.

    É curioso observar esse tipo de boicote quando pesquisa do Sesc, de 2017, indica que 71% dos brasileiros nunca foram a exposições. E não para por aí. De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura, 44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro. Uma sociedade desinformada, que não abre diálogo para as diferenças e que olha para a cultura como algo perigoso não é muito diferente da sociedade “robotizada” do clássico “1984”, de George Orwell. O jogo virou. A vida real agora imita a ficção. O livro de Orwell, por sinal, foi um dos mais vendidos no mundo este ano. Nele, o autor nos adverte sobre o estreitamento da linguagem, a dominação das telas e as dificuldades de pensar e discutir. A linguagem dos meios visuais é limitada, o que dificulta a reflexão sobre passado, presente e futuro. Publicado em 1947, “1984” nunca soou tão atual.

    Quando instituições públicas e privadas e/ou grupos organizados começam a ditar como as pessoas devem se comportar e o que consumir, é preciso resistir. Quando alguém dissemina “pós-verdades” pela internet, cabe a cada um verificar os fatos e questionar.

    Para combater o “barulho organizado” propagado pelos conservadores, é preciso usar a mesma tática. Gritar mais alto, sim. Bater panelas, sim. Ir às ruas, sim. Interromper discursos (de ódio, racismo, intolerância), sim. Boicotar, sim. Como disse Tony Morrison, nesses momentos precisamos nos unir, falar a mesma língua.

    E neste momento a linguagem que falamos é a da raiva. Esse sentimento parece reverberar como nenhum outro: seja no assassinato do carroceiro que apenas pedia uma coxinha e foi morto pela PM de São Paulo; ou na imagem de uma criança afogada em uma praia na Grécia. Não há nem mais tempo de nutrir raiva por um evento em particular. No dia seguinte, algo diferente nos choca e aquilo que causou náusea no dia anterior logo é esquecido. Às vezes, a sensação é a de que já estamos calejados, de que o mundo é “assim mesmo” e nada vai mudar. Mas se acostumar com a barbárie não é uma opção. Talvez a lição a ser aprendida seja transformar a raiva em ação.

    Em “Sobre a Tirania”, o historiador e pesquisador Timothy Snyder defende uma política de “corpo a corpo”. Para ele esse é o papel do cidadão comum. “O poder deseja que seu corpo amoleça na poltrona e que suas emoções se dissipem na tela. Saia de casa. Leve seu corpo a lugares desconhecidos, onde vivem pessoas desconhecidas. Faça novos amigos e manifeste junto deles”, defende Snyder. Em vez de lamentar nas mídias sociais, de manifestar opinião sobre tudo, procure entender e investigar o outro, o estrangeiro, o desconhecido.

    Snyder explica: “É fácil acompanhar a maioria. Pode parecer estranho fazer ou dizer algo diferente. Mas sem essa inquietação não existe liberdade. No momento em que você dá o exemplo, quebra-se o encanto exercido pelo status quo, e outros imitarão.”

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    Talvez esses exemplos de pessoas reais possam te inspirar. Veja Rosa Parks. Na década de 1950, nos EUA, a luta pelos direitos civis teve início por meio de um gesto simples de uma mulher comum. Naquela época, a segregação ainda era vigente e negros eram obrigados por lei a sentar apenas no fundo dos ônibus — além de ter que frequentar banheiros e classes de aulas separados. No estado do Alabama, Rosa Parks, após um dia de trabalho, pegou o ônibus para voltar para casa. Quando um homem branco pediu para que ela cedesse o lugar a ele, Parks se recusou e foi detida pela polícia. O caso chamou a atenção de um jovem revolucionário chamado Martin Luther King. A atitude de Parks gerou uma onda de protestos pelo país e, em menos de um ano, o Congresso mudou a lei, permitindo que negros sentassem em qualquer lugar dos ônibus. Parks ficou conhecida como a mãe do movimento dos direitos civis negros, que ganhou força na década seguinte e ajudou a moldar o rumo da história americana contemporânea.

    A imagem de um homem jovem vestindo uma braçadeira com o símbolo de uma suástica em um ônibus, em Seattle, me fez pensar em Rosa Parks — e o simples ato de resistir, de não seguir a ordem, de impor a presença diante da injustiça e preconceito. A imagem causou revolta na internet. Um grupo de ativistas espalhou a imagem pelo Twitter. Em menos de uma hora após a publicação, o neo-nazi foi identificado. Os depoimentos de quem estava presente no local não difere: além da suástica, ele provocou brigas com negros e homossexuais. O discurso de ódio do neo-nazi foi interrompido quando outro homem surgiu e o derrubou com um soco.

    Essa é uma área cinzenta. O homem, não identificado, que derrubou o neo-nazi, é herói ou agressor? O discurso ainda é capaz de reverter ideologias de opressão? Mesmo em situações extremas? O ativista negro Darryl Davis acredita que a simpatia ainda é uma resposta possível.

    Além de ativista, Davis é músico de blues, ator e palestrante. Ele tem um hobby peculiar: tentar converter membros da Ku Klux Klan e outros grupos extremistas pró supremacia branca. No documentário Accidental Courtesy: Daryl Davis, Race & America, ganhador do prêmio do júri no festival South by Southwest, Davis questiona: “como você pode me odiar se você não me conhece?”

    A história de Davis começou há mais de três décadas, quando estava tocando piano em um bar — ele já foi pianista do músico Chuck Berry — e foi abordado por dois homens da Ku Klux Klan. Após o show, eles convidaram Davis para tomar um drink e elogiaram o som dele. Os dois confessaram que, até aquele momento, nunca tinham dividido a mesa com um negro. Apesar das diferenças ideológicas, tornaram-se amigos e Davis começou a frequentar reuniões da Klan, tendo em mente a missão de entender e “converter” aqueles que o julgam pela cor de sua pele.

    Até agora, Davis conseguiu convencer mais de 200 membros da KKK a deixar a organização. A técnica de Davis é bastante simples. Ele diz usar uma combinação de lógica e história para tentar persuadi-los a reconsiderar as crenças racistas. “Se você passa cinco minutos com o seu pior inimigo você logo percebe que dividem algo em comum. À medida que você constrói uma discussão em cima disso, você cria um relacionamento e então isso se transforma em uma amizade. É a ordem natural das coisas.” Davis não acredita ter um dom especial, para ele qualquer um pode ajudar a mudar a ideia de um extremista. “Você precisa se dedicar e ter paciência. São pessoas desinformadas. Muitas apenas seguem o que os outros falam e nunca pararam para questionar aquela ideologia. No final, eles enxergam a luz, entendem as falhas dentro de suas crenças e se convertem.”

    Quando isso acontece, os membros da Klan costumam doar as vestimentas e objetos para Davis, que as guarda como um “lembrete da história”. Ele pretende abrir um museu sobre o racismo e ajudar a promover a discussão entre minorias e grupos extremistas. Apesar de disseminar uma mensagem de compreensão, o posicionamento de Davis, em sentar para conversar com o “inimigo”, até hoje gera críticas negativas dentro da comunidade negra.

    ***

    E qual seria o papel do artista em um tempo como este? Em períodos sombrios, queremos que a arte nos represente. E se o artista deseja continuar sendo chamado de artista, precisa assumir posição, entrar no jogo. Em certos momentos, diante de eventos radicais, o artista não tem mais a opção de não interferir, de não se envolver, de não mostrar a cara.

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    O ativista chinês Ai Wei esteve em São Paulo durante a última Mostra Internacional de Cinema para apresentar o documentário Human Flow: Não existe lar se não há para onde ir. Ao longo de um ano, Wei acompanhou a crise dos refugiados em 23 países, incluindo França, Alemanha, Iraque, Afeganistão e México. O documentário retrata as causas que levam milhões de pessoas a abandonarem seus países de origem, como a guerra, a miséria e a perseguição politica.

    Quando o assunto é perseguição, Ai Wei Wei entende bem. Embora seja um dos artistas/ativistas mais influentes do mundo, ele é “caçado” pelo governo do seu país. Em 2011, teve o estúdio destruído e telefonemas grampeados. No mesmo ano, foi preso sem justificativa por 80 dias. Convidado especial da Mostra, Wei aproveitou a passagem por São Paulo para protestar e comentar sobre o novo conservadorismo e os episódios de censura à arte que tem ocorrido no Brasil. Para ele, a censura pode se insinuar de forma muito sutil, penetrante e gradual, de modo que nos habituemos a ela. Durante a coletiva de imprensa, Wei defendeu que, por meio da arte, podemos nos posicionar e resistir. E ele segue esse lema à risca, com obras e performances que também podem ser vistas como atos políticos.

    Por aqui, artistas também são perseguidos. Veja o caso de Chico Buarque. Veja o caso de Caetano Veloso. Ambos são achincalhados nas redes sociais por suas posições políticas. Mas não se calam. Nenhum artista, na verdade, deveria se calar. E alguns vêm tentando combater o ódio com suas vozes.

    Em vídeo lançado pelo grupo 342Artes!, a atriz Fernanda Montenegro suplica pelo direito à liberdade de expressão.

    “Tudo é cultura, inclusive a cultura de repressão. Mas só há uma cultura que constrói um país: é a cultura da liberdade”, começa ela na gravação. “A cultura liberta, cria a alma de uma nação. No fundo, o que nós necessitamos mesmo é de educação com cultura, e cultura com educação e liberdade. Não existe nação sem liberdade”, finaliza.

    Como já cantava Gal Costa: “Atenção, precisa ter olhos firmes. Pra este sol, para esta escuridão. É preciso estar atento e forte…”.

    Não feche seus olhos.

    Não cubra seus ouvidos.

    Não feche a boca.

    Não dê as costas.

    * Texto publicado originalmente na FFW #43 que já está em bancas e livrarias espalhadas pelo país. Veja aqui a lista de pontos de venda e aqui para comprar online.

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