Enquanto acabamos de sair do SPFW, que abordou temas como liberdade, criatividade e diversidade e que, cada vez mais, vê esses valores ganharem espaço ainda maiores, a arte passa por um momento de grande intolerância com o caso da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, que foi inaugurada há um mês no Santander Cultural, em Porto Alegre.
Se por um lado damos alguns passos para a frente no que se refere à aceitação e respeito ao próximo independente de gênero, religião e tom de pele, por outro, parece que às vezes voltamos à idade das trevas, da ignorância e insignificância humana.
A mostra, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, reunia 270 trabalhos de 85 artistas que abordavam questões de gênero e de diversidade sexual em pinturas, gravuras, fotografias, colagens, esculturas, cerâmicas e vídeos. Entre os participantes, nomes da grandeza de Adriana Varejão, Lygia Clark, Volpi, Portinari e Leonilson, joias do tesouro da arte brasileira e global.
No domingo, a exposição foi cancelada após manifestação de integrantes do Movimento Brasil Livre, que exigiu seu encerramento e ainda ameaçou um boicote ao banco Santander. O grupo se queixou de que algumas obras promoviam blasfêmia contra símbolos religiosos e faziam apologia à pedofilia e zoofilia. Entre as obras que mais “incomodaram”, estão Criança viada travesti da lambada e Criança viada deusa das águas, de Bia Leite, Cena de Interior II, de Adriana Varejão, e Cruzando Jesus Cristo Deusa Schiva, de Fernando Baril.
Pego de surpresa com a repercussão, o Santander Cultural cancelou a mostra sem consultar ou dialogar com o curador ou os artistas participantes – os vivos, que ao menos se importam, porque os mortos certamente vão se divertir assombrando os mbls.
O problema de um banco querer patrocinar a arte é que ele dificilmente terá um discurso legítimo. Seu entendimento sobre um determinado tema pode mudar em segundos, como é o caso aqui. O espaço abriu a exposição se gabando de estar promovendo a discussão em torno da diversidade. Logo após a primeira rodada de acusações, soltou uma nota em que dizia que algumas imagens poderiam provocar um sentimento contrário daquilo que discutem, mas que elas foram criadas “justamente para nos fazer refletir sobre os desafios que devemos enfrentar em relação a questões de gênero, diversidade, violência entre outros”.
E então, optou por ceder às ameaças de boicote e cancelou o evento. “Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana. O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia.”
Ué, mas não é disso que se trata a exposição? Inclusão, reflexão, incentivo à arte, debate, questões contemporâneas…
“Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores e artistas brasileiros para gerar reflexão. Sempre fazemos isso sem interferir no conteúdo para preservar a independência dos autores, e essa tem sido a maneira mais eficaz de levar ao público um trabalho inovador e de qualidade.
O Santander Cultural não chancela um tipo de arte, mas sim a arte na sua pluralidade, alicerçada no profundo respeito que temos por cada indivíduo. Por essa razão, decidimos encerrar a mostra neste domingo, 10/09. Garantimos, no entanto, que seguimos comprometidos com a promoção do debate sobre diversidade e outros grandes temas contemporâneos”.
Não faz sentido esse texto. Ele falam de pluralidade, respeito ao indivíduo, comprometimento com debates sobre diversidade e fecham uma exposição que aborda justamente esses valores. Eles falam de pluralidade, mas sob um ponto de vista unilateral e, infelizmente, lamentável.
Curador e a classe artística foram surpreendidos. “Não fui consultado pelo Santander sobre o fechamento. Fiquei sabendo pelo Facebook. Logo em seguida, recebi uma rápida ligação da direção do museu, em que fui comunicado da decisão. Perguntaram se eu queria saber a opinião do banco sobre o assunto. Respondi que não precisava, uma vez que a nota divulgada já dizia tudo”, disse Fidelis em entrevista.
Muitos artistas se posicionaram nas redes sociais e em matérias em jornais e sites. Adriana Varejão, uma das principais artistas brasileiras, com obras nas coleções de museus como Tate Modern e Guggenheim, disse ao El País: “Minha pintura é uma compilação de práticas sexuais existentes, algumas históricas e outras baseadas em narrativas literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil. O trabalho não visa julgar essas práticas”. Como artista, apenas busca jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas, disse ao jornal.
Uma pena – e perda para a sociedade – quando a intolerância, a insensibilidade e a ignorância conseguem avançar. Só os intolerantes se julgam donos da verdade. Como disse Frei Betto, só o amor torna um coração verdadeiramente tolerante. Que a arte e o povo devolva como o amor e o humor dos tolerantes.
Repercussão
“A arte é o melhor lugar para debater. Eu vejo como preocupante esse tipo de movimento que impulsiona esse tipo de intransigência com o debate. Essas ideias de intolerância são incompatíveis com a arte. É uma censura”
Antonio Grassi, atual diretor executivo do Inhotim, ao El País
“Rumo ao passado. E que vergonhosa a nota do Santander, querendo justificar, valendo-se de hipócrita retórica corporativa, o ato de censura que cometeu. Viva a diversidade!”
Moacir Dos Anjos, crítico de arte e que já foi curador da Bienal de São Paulo, no Facebook
“A polêmica em torno da censura a exposição QueerMuseu no Santander Cultural expõe as vísceras da estupidez. A obra mais polêmica que retrata a zoofilia e homoerotismo é da Adriana Varejão. Um pintura espetacular que recria situações narradas do período colonial com a estética das pinturas e desenhos Shunga do período Edo do Japão 1603-1867. Essas pinturas já foram expostas no British Museum, no Musee Guimet e no MAK de Vienna. Sao respeitadíssimas e cultuadas hoje no mundo inteiro e em Tóquio existe um museu dedicado a elas. Vejam a sequência de imagens. Shunga é a base do Mangá japonês e remonta a uma tradição pictórica chinesa de mais de 1000 anos. O bestiário censurador no Brasil não consegue absorver a diversidade e nega ao brasileiro a possibilidade de conhecer um estilo de enorme valor. Perde o Brasil que se apequena diante do mundo e se mostra amedrontado pela representação do Sexo”.
Marcello Dantas, curador, no Instagram
“Que pisada na bola, Santander. Que atraso, Santander Cultural. Que ato a favor das trevas, minha gente”
Xico Sá, no Twitter
“Como dizer que uma obra de arte que contém imagem de zoofilia é apologia? Obras sobre crimes, sobre guerras, sobre violência são apologia para estas coisas? Vai ter boicote ao Museu do Prado que expõe “O Jardim das delícias terrenas”, do Bosch e que conta com várias imagens de zoofilia? A gente vai proibir a publicação de ‘120 dias de Sodoma’ do Sade ou ‘A Casa dos Budas Ditosos’ do João Ubaldo Ribeiro por ter cenas de zoofilia? É nesse ponto que a gente chegou?”
Iran Giusti, artista
“Ataques violentos por parte de alguns visitantes, além da campanha agressiva nas redes sociais fizeram com que os responsáveis pelo espaço cultural resolvessem fechar a exposição prevista para se estender até outubro. É a intolerância exibindo a sua cara através da força”.
Ana de Hollanda, ex-ministra da Cultura no Facebook
“Não é só incômodo, mas as manifestações nas redes sociais são, na maioria, de pessoas que não viram exposição”.
Gaudêncio Fidelis, curador da exposição, ao G1
“É engraçado e profundamente triste que o perfil do @santanderbrasil tenha como frase título “O que nós podemos fazer por você?”. E que, realmente, estavam fazendo pela cultura do país, ao patrocinar a exposição Queer Museu. Mas eis que as tochas da intolerância se acenderam em nome da moral. Alimentando a fogueira da censura e do preconceito mais uma vez. Uma lástima ver isso acontecer, uma pena o banco fechar a exposição…”
Zé Henrique de Paula, diretor, cenógrafo e figurinista