Por Lucas Assunção, publicitário e produtor de conteúdo de moda no Santo de Casa.
No começo do isolamento social aqui no Brasil o desfile digital de Anifa Mvuemba, diretora criativa da marca africana Hanifa, viralizou nas redes sociais ao usar modelos invisíveis e técnicas 3D para criar um desfile completamente virtual e fascinante. Para Anifa, esses planos já existiam antes da pandemia do coronavírus e do isolamento social. Mas, para diversas outras marcas acostumadas à lógica dos desfiles e semanas de moda, o isolamento social trouxe o novo desafio: como apresentar coleções de formas que emocionem tanto quanto os desfiles?
Os desfiles e fashion weeks são os maiores movimentos do setor de moda. Um desfile de uma grife ou uma semana de moda do circuito principal é responsável por mover milhares de pessoas para uma cidade, movimentar centenas a milhares de profissionais e gerar valores inimagináveis de mídia espontânea e engajamento nas redes sociais.
Em um momento tão crítico como o que vivemos, em que até grandes marcas tem sofrido fortes impactos financeiros (nessa semana a Burberry anunciou a demissão de 500 funcionários, devido ao faturamento 48% inferior), perder a maior carta na manga é preocupante para todo o setor da moda que depende desses desfiles e semanas de moda; e não, não são só as grandes grifes que se beneficiam das Fashion Weeks. Pequenas e médias marcas e designers ganham muita visibilidade (que se convertem em vendas) através dessas semanas e, ainda, ganham com a venda das peças-piloto desfiladas.
Talvez, por isso as semanas de moda foram mantidas e tentaram se reinventar e não foram canceladas.
Nesse contexto no mínimo caótico, vimos acontecer de forma completamente digital: a London Fashion Week e a Paris Fashion Week, de forma híbrida, a Milan Fashion Week, coleções Cruise e Resorts e lançamentos independentes. Vimos a apresentação de diversas coleções, sejam nas plataformas das Semanas de Moda digitais ou por marcas, de forma independente, seja ao vivo e presencial ou digitalmente. A pergunta que fica é: essas novas formas de apresentar coleções conseguem emocionar e provocar impacto tanto quanto os desfiles físicos?
Novos formatos apresentam também novas potencialidades para a apresentação de coleções, é claro. A novata Botter, por exemplo, criou um curta-metragem com um forte manifesto antirracista e a favor da causa do Black Lives Matter. A Prada apostou em interpretações diferentes de cinco artistas sobre a mesma coleção em um filme incrível. A Loewe proporcionou uma experiência sensorial com seu Show-In-a-Box e uma imersão de 24 horas em conteúdos e workshops em seu site, valorizando seus processos. A Gucci também resolveu voltar seus olhos aos processos de backstage – estratégia que já vinha utilizando – com uma transmissão ao vivo de 12 horas e utilizando os próprios estilistas da marca como modelos para os looks criados por eles mesmos. Já a Margiela criou um documentário que também retratava desde processos criativos a reuniões de zoom e a própria coleção.
Se a dúvida era se as peças seriam tão grandiosas nos vídeos quanto ao vivo, a Valentino resolveu alongar seus vestidos alguns metros, criando reais obras de arte que adornavam as modelos acima de enormes pedestais e balanços. Os vestidos ainda receberam projeções digitais em colaboração com Nick Knight e trilha sonora de FKA Twigs em um verdadeiro sonho escapista. A Dior Men comandada por Kim Jones, lançou uma colaboração com o artista ganês Amoako Boafo em formato de vídeo-documentário. Já para a coleção Cruise, comandada por Maria Grazia Chiuri, a marca optou por um desfile físico em Lecce na Itália, sem convidados e transmitido ao vivo, mas sem grandes inovações estilísticas no formato.
No caminho inverso da inovação de formatos, apenas três marcas optaram por desfiles físicos com platéia: Dolce & Gabbana, Etro e Jacquemus. Seja na tentativa de escapar um pouco da nossa realidade ou esquecer um pouco de tudo que vivemos, a decisão da Jacquemus de realizar um desfile presencial com convidados, que sabe usar os meios digitais como poucas, veio como uma surpresa – e decepção – para muitos.
É claro que não podemos fazer uma falsa simetria. A pandemia já está muito mais controlada por na França e a Itália já está em um estágio avançado da reabertura. Mas parece um tanto insensível ou vaidoso marcas com alcance global como essas apresentarem desfiles físicos com modelos e muitos convidados sem máscaras enquanto pessoas ainda batalham e morrem pelo COVID-19 ao redor do mundo.
Novos formatos trazem novas possibilidades e momentos de crise como o que vivemos podem ser espaço para o surgimento de inovações (sem romantizar, é claro.).
Por mais que o formato do desfile seja cômodo e extremamente glamuroso, também conseguimos apreciar as diversas possibilidades que um conteúdo audiovisual traz para uma coleção. Entender e apreciar esses novos tipos de produção e formatos é valorizar o pézinho (ou corpo inteiro) da moda que é inserido na arte. É claro que esses novos formatos podem causar um estranhamento a todos nós, mas passado esse momento, a moda só tem a ganhar com a exploração do digital como meio e, principalmente, com a criação de conteúdo que mistura aspectos físicos e digitais, chamado de ‘phygital’.
No entanto, para além da escolha criativa e artística das marcas, a substituição ou não dos desfiles pelas plataformas virtuais possuem uma série de outras implicações. Os eventos de moda – sejam Fashion Weeks ou desfiles off-calendário – são responsáveis por movimentar toda uma cadeia de profissionais, desde agências de comunicação e jornalistas até camareiras e equipes de beleza, passando por modelos, stylists, produtores, PR’s, fotógrafos e outros. Mesmo nas produções digitais mais ousadas, o número de modelos e profissionais empregados foi reduzido drasticamente (também em virtude de não realizar aglomerações). Portanto, esse desfalque causado pela ausência dos desfiles físicos não é sentido só no bolso das marcas, mas no de diversos profissionais da cadeia produtiva que tem sofrido com a diminuição dos trabalhos e também dos espaços de networking e conexão, também um dos papéis das semanas de moda.
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