Fatos de uma experiência pessoal: quando deixei São Paulo para viver na praia, senti uma mudança repentina. Não no movimento em si, o de me adaptar – e à minha família – a um novo ambiente (escola, fazer novos amigos, outro ritmo, etc), mas na rápida transformação de mentalidade que se deu pouquíssimo tempo após me instalar em Ilhabela. O movimento que essa mudança causou (ainda causando) dentro de mim. Quando você está em um ambiente de natureza abundante e linda, a vida ganha outros contornos, muito mais poéticos. Por exemplo, qualquer caminho que eu faço, seja para levar na escola, supermercado, banco, reunião, ele é sempre de frente pro mar. Vemos a manhã surgir e a tarde cair. Quando a lua está cheia, sua luz dá contornos deslumbrantes às montanhas na frente de casa. Você dormir e acordar cercado por beleza tem um impacto enorme em como você lida com a vida. Tudo muda, algumas coisas que eu já sabia serem velhas tornam-se somente…. coisas velhas, pois deixam totalmente de fazer sentido. No lugar, entram ideias arejadas, sem vícios, novos valores e um outro olhar para a vida. Com muito mais energia e discernimento. É como se a gente acordasse. É assim, acordada, desperta, que estou me sentindo.
Tenho certeza de que essas palavras irão ecoar em muitos de vocês lendo esse texto. Cada vez mais, um número maior de pessoas tem feito essa escolha. Não me surpreende então que a moda esteja acordada para isso e buscando traduzir essa experiência de alguma maneira em suas roupas ou desfiles. Usar a natureza e o silêncio para tentar, mesmo que momentaneamente, oferecer um espaço de contemplação no tempo presente.
O desfile da À La Garçonne aconteceu na Biblioteca Mario de Andrade. Os modelos caminharam no silêncio total e foi uma experiência rica em muitos sentidos. O que cabe aqui é que em um momento em que os desfiles viraram shows instagramáveis, com luz, cenários, celulares em punho, desfilar no silêncio em um ambiente que impõe essa necessidade (afinal, era uma livraria), nos libera para prestar atenção no que realmente importa: as roupas. Como elas se movimentam, o barulho dos tecidos, do sapato tocando o chão. É outra experiência. Normalmente, o que tem acontecido ao final dos desfiles é que quando o estilista entra para agradecer, ninguém mais bate palma porque todos estão fotografando cada segundo com o celular, ou seja, assistindo ao desfile através da tela. As poucas palmas que sobram são normalmente cobertas pela música. Aqui, todos pareciam conectados ao agora, em silêncio, sem poder conversar, sem desfocar. Não tinha outra coisa acontecendo para desviar sua atenção. O silêncio permite que o cérebro dê sentido à informação.
Se em outras estações a Chanel criava cenários como supermercados ou data centers, nesta última temporada eles criaram um grande bosque, em execução impecável com direito até a névoa que desce pelas árvores nos dias frios. Imediatamente, o público sente o clima de introspecção, de calma e acolhimento.
Um estilista que trabalha muito bem com isso é o belga Dries Van Noten. Quem acompanha seu trabalho, é familiar com seu envolvimento com a natureza. Os 55 acres que cercam sua casa foram planejados para que uma parte do terreno esteja sempre florescendo enquanto a outra está morrendo. Um lado encerra seu ciclo, o outra inicia. São desses jardins que vêm sua inspiração, onde ele encontra os motivos florais e os tons que reconhecemos em suas roupas. Seu próprio jardim é a origem de seu processo criativo – e que nunca se repete. Seu maior talento é saber olhar para as flores e as cores, criando um rico vocabulário de tons que acabaram virando sua marca registrada e são imediatamente associados a ele.
As cenografias dos desfiles também têm um papel importante nessa comunicação. No Verão 15 ele chamou a artista argentina Alexandra Kehayoglou para fazer um carpete verde na passarela onde as modelos se deitavam depois de desfilar. Descanso, ócio, contemplação em meio ao tumulto de uma semana de moda. No Verão 17, Dries convidou um dos mais incríveis floristas do mundo, Azuma Makoto, para reproduzir sua série Iced Flowers, enormes cubos de gelo com flores dentro. Apenas com o passar do tempo, é possível notar as modificações da escultura com o derretimento do gelo e os micro movimentos que geram nas flores. No fim, a gente não apenas gosta do trabalho do estilista pelas roupas, mas também porque queremos estar mais perto da pessoa que fecha os olhos e consegue ver tanta beleza.
O tema da principal exposição do V&A, em Londres, Fashioned from Nature, é justamente a relação entre moda e natureza e como os estilistas se baseiam nela para criar.
Nesta temporada de Inverno 2019, a estampa floral apareceu como uma das principais tendências – normalmente os florais são muito comuns nas coleções de verão. De novo, as flores imediatamente te transportam – ou o seu cérebro – para outros lugares, provocam outras sensações. Num período em que o presidente dos Estados Unidos insiste em dizer que não existe aquecimento global e a extrema direita tem ameaçado a democracia e os direitos humanos em tantos países, as flores surgem como uma mensagem de otimismo, alegria e delicadeza, sentimentos que estão em falta no dia a dia do mundo.
+ Dossiê FFW: tendências do Inverno 2019
Segundo a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, professora da UFRJ, “os períodos transcorridos na calmaria da natureza, permitem que a massa cinzenta – quase sempre fervilhante – experimente o sossego, em contraste a estados de esforço mental constante”, que é como a gente vive.
É por isso que tanta gente se refaz do desgaste cotidiano em meio à natureza. Somente lá existe o encontro com o silêncio, com a essência, com a verdade, a possibilidade de limpar o nosso filtro pelo qual enxergamos o mundo. Lao Tzu, filósofo da Antiga China e fundador do taoismo, teria dito há mais de 2 mil anos: o silêncio é uma grande fonte de força.
Mas a gente logo desaprendeu – se que é um dia aprendeu – e hoje vivemos no ápice do barulho, da confusão, das informações cada vez mais velozes e cruzadas, perto e à disposição de tudo e todos a um clique de distância – do celular, do relógio, do computador – buscando saber sobre tudo antes, rastreando as incertezas, tentando achar o melhor caminho para chegar mais rápido, esgotando nossas energias e nossa capacidade de reflexão e de entendimento verdadeiro sobre o que estamos vendo, lendo e ouvindo.
O filme Me Chame Pelo Seu Nome, como bem me lembrou meu amigo Jackson Araujo, fala exatamente sobre essa relação tempo – natureza. “Do tempo que sem saber, passaria tão rápido, deixando marcas indeléveis em nossas memórias, que andam tão apagadas nesses tempos de hiperconexão, redes sociais, aplicativos e afins”, ele escreveu em um post no Medium. “Do tempo em que viver o presente sem ter a certeza do depois era uma condição a ser vivida na pele do aqui e agora”.
Estar mais conectado com a vida em si em vez de querer controlar cada segundo dela, dar tempo ao tempo e entender um ritmo que vem de um aspecto muito mais amplo e que não gira em torno do nosso umbigo, significa estar disposto a uma vida de incertezas, pequenas e grandes. Como gratificação, ganhamos o poder de não renunciar ao que é belo.