*Esse conteúdo é parte da serie POTENCIALIDADES com curadoria de Jal Vieira publicada aqui e em nossas redes
Por Jal Vieira
Se você não conseguiu pensar em nenhuma, nós temos um problema aqui! E não é a inexistência dessas pessoas, porque elas existem e têm feito a diferença no mundo criativo (não só nele, é claro!).
Para falar sobre elas, eu preciso, antes, contar como foi iniciar na moda, do ponto de vista pessoal, ainda sem me entender direito como mulher preta e não me enxergando nesse universo.
Eu nasci na cidade de São Paulo, em Santa Cecília, bairro centralizado. Filha de uma mulher preta, migrante do sertão baiano, que veio para cá sozinha, na década de 80, sem nenhum suporte. Os salários de faxinas que minha mãe ganhava só davam para arcar com um aluguel no Jardim Menininha – um dos bairros que fazem parte do Jardim Ângela – periferia da Zona Sul de São Paulo. Quando eu tinha 9 anos, nos mudamos para a Brasilândia – Zona Norte – para morarmos em um quarto, sala e cozinha com mais duas tias minhas que também viviam de faxinas nas casas de pessoas brancas dos Jardins.
Apesar de todas as condições nada favoráveis, eu nunca deixei de ir à escola. E sempre fui incentivada por minha mãe a estudar, para – como ela sempre dizia – não me sujeitar a humilhações na casa de patrões. Minha mãe me apoiava em tudo. Por todo esse apoio, foi também ela quem me inseriu nas artes. Então, desde pequena eu me arriscava, entre outras coisas, a desenhar. E eu desenhava bem, mesmo nunca tendo feito um curso na área.
Um dia, assistindo a um programa na televisão de tubo que minha mãe tem até hoje, vi um desfile de moda acontecendo. Era a primeira vez que eu via uma passarela. Naquele momento, meu olhar despertou para a moda. Mas a moda não havia despertado para mim.
Em meio a croquis – que eu ainda não sabia que tinham esse nome – eu me perguntava onde estavam os rostos iguais ao meu. Na passarela, eu só via meninas brancas, magras e esguias. E, consequentemente, tudo o que eu desenhava ia tomando essas formas e cores e se afastando cada vez mais das minhas identidades. Por isso, me enxergar nesse espaço foi custoso. E ainda é, às vezes.
No caminhar dessa trajetória, enquanto finalizava os estudos básicos, eu começava a pensar se eu cursaria aquela área. Nessa época, eu vivia com um salário mínimo de operadora de caixa em um supermercado, como jovem aprendiz. E minha mãe permanecia como diarista em famílias elitizadas da cidade. Nem se juntássemos nossos dois salários e deixássemos de pagar todas as contas eu poderia fazer a graduação que eu queria. E eu era a primeira de minha família a cogitar entrar numa faculdade.
As tentativas continuavam. Então, em 2008, eu prestei a prova do ENEM e me candidatei a uma bolsa no ProUni. Na época, a faculdade que eu queria cursar oferecia apenas 3 bolsas para esse curso. Eu fui uma dessas três pessoas. Você pode dizer: “Nossa, Jal. Parabéns!” e, apesar de ser mesmo uma vitória e temos que comemorar, é preciso se preocupar também. Como uma menina, em 2008, era a primeira de uma família inteira a terminar os estudos básicos e entrar na faculdade? E, mais do que isso… como essa é uma realidade extremamente presente ainda em 2020? Eu espero que você se questione sobre essa resposta.
Entrar na graduação foi só um dos desafios. Eram inúmeras as condições sociais que me impossibilitavam de continuar o curso. Ainda assim, mais uma vez, eu tive o apoio de minha mãe e, em 2013, concluí a graduação.
Durante a faculdade, estagiei em uma marca grande, conheci inúmeras pessoas, mas, ainda assim, eu continuava procurando por rostos que eu pudesse me espelhar e, eram poucos os que eu me deparava. Ali, entre 2010 e 2016, eu já começava a me entender como mulher preta. Sim! Eu demorei muito a entender a minha ancestralidade. Por não ser uma mulher retinta e estar em um meio dominado por pessoas brancas e de elite, a minha identidade ia se invisibilizando. E apesar de não ver rostos como o meu, eu ainda não entendia o que aquilo queria dizer. Mas esse questionamento começava a se refletir no meu trabalho.
Na primeira coleção que fiz, em 2011, para o concurso Fashion Mob da Casa de Criadores, além do tema, todas as modelos que trabalhei eram mulheres pretas. Eu ainda não sabia, mas eu já estava tentando suprir ali a falta que eu sentia de vivências como a minha. De lá para cá, eu comecei a entender o meu trabalho para muito além da roupa, mas como uma mensagem potente do que eu buscava. Quando eu olhava aquele casting inteiro só com mulheres negras, eu finalmente me enxergava nelas. Eu finalmente entendia que aquele espaço também poderia ser meu e delas.
Hoje, em meio a todas as movimentações que estamos acompanhando, eu ainda me pergunto: Por que sendo a maioria da população brasileira ainda somos minoria representativa nesses espaços? Espaços esses que podem e devem ser ocupados por nossas corporalidades. Aliás, não só por nossas. Aqui, eu faço um recorte racial. Mas é necessário ampliar ainda mais o olhar e os espaços para corporalidades trans, de pessoas com deficiência, de indígenas e toda a pluralidade de corpos possível. Inclusive, essa é uma das pautas que estamos nos debruçando para apresentar aqui no Potencialidades.
E hoje, em meio a todos esses questionamentos que reverberam em mim desde o meu primeiro contato com a moda, divido com vocês nomes nessa área que hoje fazem eu me enxergar cada vez mais, que me potencializam e que você precisa conhecer!
370
Esse é o número da casa que Glaucia, sua mãe e sua tia vivem. As três dão vida à marca 370, onde fazem roupas confortáveis com tecidos reaproveitados de casa mesmo. Para conhecer mais, acesse o instagram @370oficial
Aretha Sadick
Modelo, performer, educadora e atriz, Aretha tem um trabalho extremamente pertinente nas artes como um todo, por meio de questionamentos necessários sobre ancestralidade e discussões acerca de corporalidades plurais. Para conhecer mais, acesse @arethasadick
Dresscoração
Uma conexão de memória, natureza e diáspora é dresscoração. São roupas e acessórios com afrobrasilidade que inspiram, ensinam e unem ancestralidade ao contemporâneo. Autorais, todas as peças são desenvolvidas pela artista Loo Nascimento através de uma minuciosa pesquisa e garimpo de referências. Para conhecer mais, acesse @dresscoracao
Naya Violeta
Criada em 2007, a marca leva o nome artístico de sua criadora, a designer Naya Violeta, profissional que adota como perspectiva para as suas criações o olhar pessoal e afetivo, assim como o caráter auto-biográfico e narrativo, elementos que juntos permeiam as pesquisas visuais e de tendências para a marca. Produzindo uma moda autoral afro afetiva e descentralizada, feita no cerrado goiano. Para conhecer mais, acesse @nayavioleta
Isaac Silva
Uma trajetória regada de energia positiva, que entrega verdade, amor e alegria em cada peça de roupa confeccionada. “Acredite no seu Axé” é uma filosofia de vida, que não está no campo material, mas que interfere nas criações, entregas e resultados de Isaac Silva. Para conhecer mais, acesse @isaacsilvabrand
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