Por Apolinário, especial para o FFW
Neste final de semana, São Paulo recebeu de mala, cuia e cases, o festival holandês Dekmantel. Pela primeira vez no Brasil e fora da Holanda, os compassos e sintetizadores tiveram o saudoso Jockey Club (que um dia recebeu o Free Jazz Festival) como palco em dois dias escaldantes e escaldados.
A convite do FFW, faço um apanhado no estilo recordar é viver. Para quem acompanhou o evento sentir ecoar novamente o grave no corpo, e quem não pode vivenciar dentro do Jockey, entender o quão marcante e dançante foi o Dekmantel Festival em São Paulo.
Dia 01
Começamos o primeiro dia ao comando dos brasileiros Ney Faustini e Renato Cohen, fazendo das primeiras faixas tocadas no festival um aquecimento do que teríamos durante todo o evento. Seguidos por Davis & Márcio Vermelho (idealizador e produtor do projeto ODD), em um back2back de excelência, interromperam as andanças de palco á palco, pela busca do metro quadrado mais próximo as caixas de som.
Dali para frente a cada entrada de artista, se cria um imenso questionamento:
– Qual o próximo show que iremos assistir?
Aguardando um pedaço da história acontecer em nossa frente com a apresentação do lendário grupo carioca Azymuth, formato em 1973 no palco da Gop Tun/Boiler Room, pincelei rapidamente a discotecagem do sueco Kornél Kovács, que meteu clássicos e geriu de forma maestral as tais vibes no palco principal (Main).
Da curadoria feita em viagens à África para o palco Gop Tun/Boiler Room, Brian Shimkovitz aka Awesome Tapes From Africa, mergulhou na cadência suada do kuduro e percorreu diversas nuances esbarrando no afrobeat, gqom e até soca, trazendo o calor do continente africano para o Dekmantel São Paulo.
Ainda no palco Gop Tun/Boiler Room, segue o rebolado num samba-descontruído, desta vez com os “pais do trance” Azymuth, em uma aula de swing, simpatia e genialidade, em pingos de suor que se confundiam com as gotas de chuva que caiam e rasgavam o céu azul trazendo um frescor todo novo ao dia. Chuva que não desanimou, encharcou os menos preparados e veio aliviando toda a carga de energia doada durante “Vila Mariana – De tarde”.
Corri pela chuva e aproveitei os últimos minutos do set DENSO de Juju & Jordash, que abriram as portas do calabouço para liberar toda a intensidade do quicar de pés na lama e o 4×4 duro da lenda. Nina Kraviz.
Nina, em um set sem muitas surpresas, mas digno de uma boa viagem, fez do solo molhado do Jockey uma experiência adicional a discotecagem, em faixas com um gostinho de 8bit e um pé no grime. A russa fechou o cerco e passou o bastão para Jeff Mills ao som de Masro “Back 2 da Future”. Como dizemos por aí, Nina foi óleo para a grelha e todos saíram fritos e bem servidos com porção dupla e grande.
Terminamos o dia com a aula magna de Jeff Mills, fundador do Underground Resistance (UR) – coletivo de música eletrônica em Detroit, com forte presença na construção da cena techno nos Estados Unidos. Fino, cada faixa, mudança e filtros aplicados pareciam conversar com o público que estava a metros de distância de seus olhos. Sabedoria e maturidade de poucos.
Dia 2
Após uma noite anterior intensa na Fabriketa (que recebeu a versão noite do festival), com Mark Servito, Ben Klock, Vakula e os brasileiros Paulo Tessuto (Capslock), L_cio e Cashu (Mamba Negra), os sobreviventes e guerreiros voltam ao campo. Com um céu muito mais convidativo e um calor de 32 graus, iniciamos o segundo dia de Dekmantel. Em um dia com de headliners importantes e muito esperados, a grama surrada do dia anterior recebe outros calçados, mais cores e até pés descalços. Com Elohim, Gui Scott (Gop Tun), Caio T e a chilena Valesuchi, as pistas começam a ganhar seus espectadores, ávidos por cada beat.
Num dia mais tropical que o anterior, Shanti Celeste no palco principal trouxe referências latinas e até alguns clássicos da disco como “Keep the Fire Burning”, de Gwen McCrae. Num flow bem parecido e ótimo para aproveitar o clima solar dominical, os paulistas da Selvagem flertaram com a disco, house e suas descobertas brasileiras e esquentaram logo cedo a pista do palco Selectors.
Quente, porém menos latino e mais europeu, temos Zopelar, em set recheado de percussão e neste momento a pequena pista UFO se abre com uma brisa vindo diretamente do mar criada beat a beat pelo mineiro mais paulista que conheço.
Um festival repleto de lendas. E o segundo momento do festival foi maestrado com requintes de genialidade pela instituição Hermeto Paschoal. Em um arrochada à la Miles Davis. É impossível não viajar nas melodias abrasivas e métrica alucinante. Sambei, suei e gritei, e fiz isso na grade, como todo bom show deve ser reverenciado.
Na sequência, aprendemos com a calma de Joey Anderson, no palco UFO. O norte-americano traz a malemolência ao house e fecha o set ao som do rei do pop, Michael Jackson! Durante a discotecagem de Joey, me atrevi e pulei nos palcos Gop Tun/Boiler Room e principal para ver as peripécias de Huerco S. e Moddyman, respectivamente. Descalço, Huerco S, com seus óculos escuros, jeans rasgados e uma energia cativante, incendeia a pista. No pouco que pude aproveitar, foi insano como faixa à faixa o cara vinha com mais energia. E a resposta era imediata com os gritos da multidão. Já Moodymann, fez como o flautista de Hamelin e levou todos para cima, para baixo e de um lado ao outro, alternando bpm, ritmos e frequências. Um set para aprender como manter uma pista cheia de sorrisos durante o tempo todo.
Desse ponto para frente, fica impossível dizer como tudo aconteceu. Fatima Yamaha, em live performance, Palms Trax e seu vogue noventista, os brasileiros incendiários do Fatnotronic. Além do set mais quente da noite com John Talabot. Nicolas Jaar foi sem dúvida o mais aguardado e postado nas redes sociais, mas deixou de certa forma algumas perguntas, pois me dividi em dois e posso dizer que Ben UFO no back2back com Joy Orbison e o set alucinante de Helena Hauff foram momentos memoráveis em uma proporção equivalente.
Para os amantes de nomes mais estabelecidos ou para os mais desconstruídos e ávidos pelos nomes mais obscuros, o Dekmantel Festival em São Paulo, superou, sem dúvidas, as expectativas. Há tempos não se via uma organização tão exemplar! Todos os shows aconteceram no horário programado, o soundsystem de todas as pistas era excelente, havia repositores de protetor solar, capas de chuva e zero filas. Parabéns a Goptun que fez o rolê acontecer. Algumas festas podiam tomar como lição algumas coisas deixadas pelo festival como organização, estrutura, curadoria primorosa do lineup e respeito ao público.
Highlights:
Palco UFO: 40% Foda Maneiríssimo, mostrou o poder dos compassos cariocas e foi um dos sets mais incríveis do dia neste palco!
Red Light e na Manteiga: As minas Tata Ogan e a norte-americana Aurora Halal, sem dúvida, fizeram a mais importante apresentação dessa pista.
Gop Tun/Boiler Room: Azymuth com toda a genialidade e Bixiga 70, com as coreografias e metais super dançantes e cativantes.
Selectors: Fica o meu selo “Anotaram a placa?” para o Dekmantel Soundsystem.
Main Stage: A medalha de ouro vai para o lendário e único negro a compor o line-up no primeiro dia do festival, Jeff Mills, com toda a força e sutileza no set mais charmoso do dia.
O FFW foi parceiro oficial do Dekmantel São Paulo e publicou durante todo o mês de janeiro colunas semanais sobre o evento.