Por Luiz Henrique Costa
Com a sua percepção de futuro e publicidade através do inconfundível estilo Pop Art, Andy Warhol levantou discussões vanguardistas ao retratar versões vibrantes de celebridades como Marilyn Monroe, Elvis e Jacqueline Kennedy passando por produtos de consumo de massa como Coca-Cola e os enlatados Campbell´s. O artista visionário que fundou a publicação base sobre a vida dos famosos, a revista Interview, em 1969, e autor da célebre frase “No futuro todo mundo terá seus 15 minutos de fama” não imaginava que chegaríamos aos anos 2000 com um programa de TV com formato e premissas aparentemente muito simples: trancar uma dúzia de anônimos dentro de uma casa cheia de câmeras ligadas 24 horas por dia. Isolados de qualquer contato com o mundo exterior esperava-se por conflitos, flertes ou o que mais naturalmente pudesse rolar entre os participantes. Sem roteiros. O jogador mais popular que sobrevivesse às semanas de confinamento e aprovação do publico ganharia 500 mil reais.
Os Jogos Vorazes embalados pelas torcidas que ditam os rumos dentro e fora da casa através das redes sociais ainda não existiam. A internet engatinhava, as votações eram via ligações no estilo 0800 ou por SMS, mas nascia uma fixação nacional, que talvez poucos imaginassem que seria possível, muito menos que chegaria à sua 21ª edição com o mesmo entusiasmo da estreia incorporando influencers e artistas ao seu elenco.
O fenômeno Big Brother no Brasil
Goste ou não o BBB (no Brasil estreou em 2002) é um fenômeno incontestável de audiência e de resultados impressionantes para patrocinadores: no perfil da C&A no Instagram borbulham perguntas de usuários sobre onde comprar o macacão vermelho ou a calça jeans das participantes. Anônimos se tornam celebridades instantâneas na internet e as suas torcidas mantem certa obsessão inexplicável por esses integrantes, alimentam vínculos, relações de intimidade, admiração e afeto por alguns e ódio ou julgamentos de outros que muitas vezes acabam no temido cancelamento.
Os números são superlativos: Juliette, a favorita da edição acumula hoje mais de 22 milhões de seguidores no Instagram. No ano passado o ‘paredão’ histórico de Manu Gavassi bateu o recorde impressionante de 1,5 bilhão de votos e especula-se que o faturamento do programa tenha atingido R$ 529 milhões. Reflexos potencializados devido às medidas de isolamento social que começaram em paralelo a edição de 2020, mas sem dúvidas muito impressionantes.
Mas afinal, o que move essa arena maluca dos tempos modernos?
O Show de Truman
O visionário roteirista Andrew M. Niccol, responsável pelo brilhante O Show de Truman (1998), dirigido por Peter Weir, talvez saiba a resposta e certamente estudou obras relevantes como o livro A Sociedade do Espetáculo (1967) do escritor marxista Guy Debord.
No filme, a vida do protagonista é um emaranhado de dias insignificantes e iguais. Tudo se movimenta ao seu redor com a precisão de um relógio: a sua rotina e o seu mundo são formados por paredes invisíveis que ele é incapaz de ultrapassar porque ele nem sabe que elas existem. Cada passo parece inexplicavelmente ensaiado. Mas existe uma voz que ecoa no fundo de Truman, o personagem de Jim Carrey, que sabe que algo está errado, que nada é espontâneo ou natural.
Truman Burbank já nasceu dentro de um estúdio e cada detalhe da sua vida é assistido por milhares de pessoas em todo o mundo, ele é o centro de um programa de entretenimento. Todos à sua volta são atores: a mãe, o chefe, o melhor amigo, os vizinhos e a esposa fazendo merchandising de um produto sorrindo para as câmeras, em um formato de reality-show perverso que usa o personagem de Carrey como o protagonista involuntário.
O céu da vida de Truman é lindo, de um azul fantástico.
Os figurinos e o estilo das casas dos personagens remetem a década de 1950, o período marcado pela reconstrução econômica do pós-guerra e com fortes bases de consumo. Perfeito, harmônico, planejado.
As coisas passam a mudar quando a pulga atrás da orelha de Truman vai crescendo junto com as angustias em conhecer o novo e explorar o mundo desconhecido por ele. Algumas cenas são catárticas como a que um holofote cai dos céus ou quando o personagem ao navegar pelos mares bate no fim do mundo, nas paredes do estúdio, os limites de um universo plano.
O diretor da ‘vida/show’ de Truman, o personagem de Ed Harris, se utiliza de todos os artifícios para manter o protagonista preso dentro daquele espaço e manter a audiência do programa: dias que amanhecem ou escurecem a qualquer momento, tempestades, close-ups, perseguições, novos personagens, figurantes, trilhas dramáticas.
A síndrome de Truman
Tudo é tão convincente e planejado que tal como no filme, existe hoje uma síndrome real em que indivíduos acreditam que vivem dentro de um reality e que todos que os rodeiam são personagens de um roteiro estabelecido.
Vamos substituir Truman por Keeping Up With the Kardashians, que anunciou recentemente as datas da vigésima e última temporada. Que fashionista nunca sonhou com um closet de bolsas, sapatos e roupas de designers de luxo como o de Kim? Ou quem nunca se pegou dançando nos fantásticos lip syncs das finais de RuPaul´s Drag Race ou tentou preparar um ovo mollet com a mesma habilidade de Paola Carosella?
Sejam editados, manipulados ou realistas, a maioria de nós consegue se identificar com alguma dessas ofertas. E convenhamos, às vezes é divertido e necessário se anestesiar um pouco da realidade com outras realidades.
O Show de Truman capta com perfeição esse desejo dos tempos modernos de se espelhar no que se vê através de uma tela.
A jornada de Truman bebe da fonte da obra mais complexa de Platão, A República e O Mito da Caverna e de citações famosas como a do escritor William Shakespeare como a que diz: “O mundo inteiro é um palco e todos os homens e mulheres não passam de meros atores. Eles entram e saem de cena e cada um no seu tempo representa diversos papéis”.
O Show de Truman chegou à idade adulta em excelente forma, trazendo discussões relevantes como a obsessão e consumo da super-exposição e os filtros de vida editáveis nas redes. Um tema que não poderia ser mais contemporâneo em um filme que merece ser revisitado. O filme pode ser assistido no Netflix.