Por Waldick Jatobá
Memórias, fatos cotidianos coletados constantemente no seu secreto caderno de anotações, desde o acordar até o adormecer. Eduardo Berliner vive em perfeita sintonia com o mundo. Jovem e talentoso artista plástico contemporâneo, dedica-se essencialmente à pintura e costuma dizer que quando pinta, cria atritos.
Seu senso de observação e disciplina é apuradíssimo, resultando em telas pintadas a óleo, intensas, carregadas de uma força pictórica única que o conecta diretamente com suas limitações e vulnerabilidades.
Berliner é hoje um dos principais artistas de sua geração e muito bem cotado e apreciado entre colecionadores e galeristas. Na conversa que se desenrola a seguir, ele fala sobre as influências para sua formação, a paixão que o mantém em constant produção e seus processos de criação.
Durante a infância, quem foi o primeiro artista do qual você se lembra de ter ouvido falar?
Quando pequeno, visitei museus de arte com meus pais, mas não lembro de sentir interesse especial por algum artista. O que me fascinava era o Museu de História Natural, com seus dinossauros, esqueletos e dioramas. Lembro dos gráficos indicando o cruzamento das aves e a diferença entre os bicos em um modelo evolutivo darwiniano. Uma vez visitei o Museu da Guerra com meus irmãos. Em uma sala dedicada à Segunda Guerra, por eu ser muito novo, meu pai não permitiu que visse algumas fotos, já que o conteúdo era muito violento. Essas imagens que não vi ficaram marcadas na minha cabeça. Adorava as ilustrações de uma coleção de livros infantis. Eram títulos como As Viagens de Marco Polo – não era o texto o que me interessava e, sim, as ilustrações ricas em detalhes. Lembro que, olhando para esses desenhos, formulei pela primeira vez uma pergunta que referia a natureza de um determinado meio. Percebia que as linhas utilizadas na ilustração eram muito finas e delicadas, nada que eu pudesse realizar com os materiais de desenho tradicionalmente dedicados às crianças. Então perguntei para uma amiga da minha mãe: como foram feitas linhas tão finas? Ela respondeu: ”Com uma caneta de nanquim, cuja ponta é como uma agulha”. Levei um susto com a resposta, com a ideia de desenhar com uma agulha, algo utilizado em uma seringa. Nessa época, ganhei minha primeira caneta de nanquim. Amo essa ferramenta até hoje. A primeira vez que vi alguém pintando foi o José. Ele veio do Nordeste e trabalhava na casa dos meus pais. Nas horas vagas, fazia esculturas de barro e pintava algumas delas com tinta acrílica. Lembro dos pincéis e de uma caixinha cheia de tubos de tinta. Achava fascinante, adorava vê-lo trabalhando. Ocasionalmente, pedia um pedaço de argila e tentava fazer algo também.
Quais foram os momentos mais importantes de sua formação? Houve alguém que o influenciou a seguir esse caminho das artes visuais?
Conheci um amigo durante a faculdade de desenho industrial que mantinha cadernos de anotação em que desenhava, escrevia coisas e fazia colagens. Eram desenhos maravilhosos, repletos de franqueza e urgência. Nessa época, influenciado por esse colega, comecei a manter cadernos de anotação, prática que tenho desde então. A partir desse momento, comecei a desenvolver trabalhos independentemente das demandas da faculdade. Utilizava algumas disciplinas como pretexto para desenvolver meus projetos e ferramentas do design gráfico para produzir coisas que não pertenciam a esse contexto. Arranquei a pele de um coelho mecânico e projetei a embalagem para essa carcaça robótica. Fazia coisas dessa natureza e não me preocupava em nomear o que estava fazendo. Eu apenas fazia coisas. Gradualmente, à medida que meu envolvimento com esses projetos aumentava, surgiam dúvidas, questões, curiosidade e inquietação. Então, esse mesmo colega sugeriu que eu fizesse um curso de desenho com o Charles Watson, pois ele abordava uma série de questões que pareciam importantes para mim. Estudar desenho com o Charles foi determinante para minha formação, pois entendi, pelo desenho, a possibilidade de construir conhecimento por conta própria. Um tipo de conhecimento muito especial e pouco valorizado, fruto do contato diário e intenso com um determinado meio e a gradual compreensão das questões pertinentes a esse campo. Depois, por aproximadamente dois anos, participei do grupo de estudos coordenado pelo Charles em que discutíamos os projetos semanalmente. Ao longo desse período, entrei em contato com a obra de inúmeros artistas. Em certa ocasião, foi proposto ao grupo um exercício de pintura. Até esse momento (2001) eu nunca havia pintado com tinta óleo sobre tela. Depois desse primeiro exercício, nunca mais parei de pintar. Toda a minha curiosidade e desejo naturalmente se direcionaram para esse ponto. Pensei que queria fazer isso todos os dias da minha vida o dia inteiro. Até então, minha prática artística era muito fragmentada e, curiosamente, por intermédio da pintura, consegui unir boa parte dos meus interesses. Fiz meu mestrado em desenho de tipo para leitura em Reading, na Inglaterra entre 2002 a 2003. Essa é minha segunda paixão. Quando retornei para o Brasil, passei a dar aulas de desenho de tipo e pintar. Gradualmente, consegui dedicar mais e mais tempo para a pintura.
Uma vez você declarou que, quando pinta, cria atritos. Como você começa uma pintura ou um trabalho de arte? O que vem primeiro: a ideia da forma ou o suporte?
Não há uma regra. Há anos conservo uma prática diária de desenho e pintura, e isso me mantém atento em relação a mim mesmo e ao meu entorno. Como resultado dessa rotina, ocasionalmente, surgem imagens mentais. Coisas estranhas, que muitas vezes não consigo mapear imediatamente de onde vêm. Então, tento encontrar uma maneira de colocar essa imagem mental no mundo. À medida que transformo pensamento em coisa no mundo, os materiais que utilizo passam a interferir de forma determinante. Ou seja, passo a pensar por meio dos materiais e da relação entre meus olhos e minhas mãos. Gradualmente, a imagem mental inicial pode se tornar menos importante e o processo passa a ser governado pelas regras do suporte e do meio em que estiver trabalhando. Às vezes, posso chegar a algo que considere interessante, mas, em outros momentos, posso achar que essa imagem mental, quando encostou no mundo, tornou-se pouco interessante. Nesse caso, continuo trabalhando, e o próprio suporte oferece uma dica para seguir adiante. Algo que não fazia parte de nenhum plano, algo que quebra, uma mancha… Aí ocorre algo diferente. Pelo contato com o próprio meio, coisas desconexas que habitavam meus pensamentos encontram espelhamento nos materiais, então eu posso ver algo que habitava meu pensamento, mas ainda não podia nomear. É como se a pintura ou o desenho fosse a ponte entre informação ainda desconexa. Em outros momentos, não tenho certeza do que quero pintar, então continuo desenhando e fico muito atento ao meu entorno. Procurando uma dica no mundo, coisas que encontro na rua, algo que tenha lido, a letra de uma música, uma frase solta, uma folha, um inseto… Então recomeço a desenhar e pintar e novas imagens vão surgindo na minha cabeça. Não tem início ou fim.
Você é essencialmente um pintor. O que te atrai na pintura?
É como se o mundo fosse um rádio fora de sintonia, em que identifico apenas ruídos, e a pintura não me ajuda a transformar o ruído em música, mas colabora para que eu encontre sentido no próprio ruído. Pintura é algo que me coloca em contato direto com minhas limitações e mais profundo senso de vulnerabilidade. É uma espécie de membrana que me ajuda a perceber o mundo e criar sentido. Quando fico muito tempo sem pintar ou desenhar, sinto que meu olhar perde intensidade. Quando pinto, mantenho vivas, de forma muito intensa, a experiência e a lembrança de tudo o que vejo e penso em cada parte do meu corpo. Dessa forma, cada experiência diária encontra reverberações nas demais experiências construídas ao longo dos anos.
Qual a importância da cor no seu trabalho?
A questão para mim não é apenas a cor, mas a natureza do próprio meio. A cor na aquarela e no tipo de pintura a óleo que desenvolvo pode funcionar de maneira muito distinta. Acho que a diferença está no modo como afetam diferentes partes da minha memória. Para mim, aquarela é sobre luminosidade, atmosfera criada pela luz. Afeta meu pensamento de maneira muito dispersa e sutil. Já muitas de minhas pinturas a óleo lidam com memórias do corpo e sua fisicalidade. Acho que essas diferenças têm uma ligação direta com a natureza da tinta e sua relação com o suporte. Por exemplo, é muito diferente pintar sobre madeira ou sobre lona, a experiência sensorial intuitivamente se relaciona com o assunto e com o rumo que uma pintura pode tomar.
Você tem uma rotina para criar?
Tenho, simplesmente vou todos os dias para o ateliê e trabalho. Se não tiver uma ideia específica, procuro algo que ajude a iniciar um movimento. Pode ser algo que encontrei no caminho entre minha casa e o ateliê, um pombo morto, uma folha, uma cebola… Caso não encontre nada que interesse, acabo destruindo alguma pintura antiga, pinto por cima e, à medida que mexo na tinta, meu olho e minha mão vão ficando curiosos e, gradualmente, entro no processo de pintura. Há anos mantenho registros fotográficos e tenho pilhas e pilhas de fotografias espalhadas pelo ateliê, às vezes, em busca de um ponto de partida, pego aleatoriamente uma foto enterrada no bolo. Acho curioso como fotos a que eu não dava a menor importância podem se tornar interessantes em outro momento, quando associadas a um novo problema. Muitas vezes, são apenas pequenas desculpas para iniciar o processo.
Quem são seus ídolos no mundo da arte?
Admiro inúmeros artistas, mas guardo entre meus ídolos um lugar especial para William Kentridge, Paula Rego e Lucian Freud. De alguma forma, em todos eles encontro um olhar perfurante sobre as coisas que estão bem debaixo de nosso nariz, mas não notamos. Na época em que comecei a pintar, tive a oportunidade de visitar uma retrospectiva de Freud, e foi uma experiência muito marcante pra mim.
Você é um jovem artista com um currículo importante pra sua idade. Já participou da Bienal de São Paulo e também já fez exposições fora do Brasil. O que mais te marcou em sua trajetória?
A Bienal de São Paulo foi importante em virtude do ótimo relacionamento com a curadoria. Foi a oportunidade de fazer pela primeira vez algo que mais e mais passou a me interessar. Levar para o espaço expositivo trabalhos de naturezas distintas. Pinturas, desenhos, aquarelas, textos, esculturas, fotografias e cadernos. Percebi que essa maneira de ordenar as obras no espaço ecoava o modo que percebo o mundo e os mecanismos de minha memória.
Este ano ainda tenho minha individual na Casa Triângulo, em São Paulo. Dediquei o ano inteiro apenas para esse projeto, com abertura dia 5 de novembro.
Quanto tempo, em média, você dedica a um trabalho? E quando você tem a certeza de que está pronto?
Difícil definir. O trabalho pode ficar pronto em algumas horas, um, dois ou três dias… A realização normalmente é rápida. No entanto, acho curioso notar que algo pintado em poucas horas pode ter sido iniciado há anos em uma pequena anotação. Na Bienal de São Paulo, apresentei um trabalho que de certa forma toca nessa questão. Uma mesa com cadernos de desenho produzidos ao longo de uma década. Cada desenho pode ter sido realizado rapidamente, mas o número de folhas do caderno nos lembra do tempo acumulado.
O trabalho está pronto quando não sinto mais necessidade de modificar nenhuma das partes. No entanto, preciso voltar para casa, dormir e olhar novamente no dia seguinte, afastado da intensidade do processo para saber se o trabalho ainda sobrevive. Às vezes, algo que inicialmente parecia ruim ou inacabado parece forte e completo no dia seguinte, e a relação oposta também ocorre com frequência. Outras vezes, um quadro fica guardado em uma sala durante meses num estado de dúvida. Pode ser que o surgimento de outras obras entre em diálogo com esse quadro, então, ele fica pronto por conta própria.
Qual conselho daria para os que estão começando a carreira agora?
Acredite no pensamento que é construído lentamente pelo contato diário com seu próprio trabalho.
Vá lá:
Exposição Eduardo Berliner (até 23.12)
Casa Triângulo (Rua Estados Unidos, 1.324, São Paulo)
*A FFWMAG é uma publicação semestral e a edição de número 42 com 4 capas especiais já está à venda nas principais bancas do Brasil, na rede da Livraria Cultura e loja online (www.livrariacultura.com.br)