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    Euphoria é o blur do desejo de uma geração real ou espelhada?

    Euphoria é o blur do desejo de uma geração real ou espelhada?

    POR Redação

    Por Lulu Mendes

    Todo mundo parece estar chapado de Euphoria — a série que praticamente obriga seu público alvo, uma geração inimiga da espera, a cultivar paciência até às noites de domingo: dia de encontrar os personagens de Sam Levinson, seu criador, agora com Zendaya, intérprete da protagonista Rue, integrando o time de produtores executivos. E nem adianta reclamar: HBO não é de fazer muitas concessões. Não à toa, temos as nudes. Elas estão mesmo lá.

    Refletir se as genitálias expostas na série são verdadeiras ou fake não é bem o objeto deste artigo — mas as fantasias das personagens, suas obsessões, neuroses, repetições e espelhamentos parecem sinalizar alguns sintomas do nosso tempo sobre a coisa do desejo, tão nebuloso, e algumas brutalidades da infância que repousam nesse território também.

    Começando por Fezco (Angus Cloud), o melancólico traficante de drogas da série, e a infância agitada que teve ao lado de sua primeira parceira de crime: uma gângster loira e furiosa que dirige um Cadillac, compra 10 mil dólares de aspirina achando que era cocaína e come homens traiçoeiros no café da manhã. Ela é sua avó, na pele de Kathrine Narducci (The Sopranos).

    Pouco sabíamos sobre o personagem, mas a nova temporada faz uma escolha interessante em começar por seu passado: em partes porque aproxima Rue (Zendaya) de Fezco, o que já denota a sua recaída nas drogas, mas é aí, também, que a série dá o pulo do gato em seu tema central: as relações parentais. Entre vícios, violência, identidade e dependência (química, emocional, afetiva), assuntos que consagraram a série no mainstream por sua honestidade e singularidade, a segunda temporada abre possibilidades no panorama familiar e justifica muitas coisas sem entregar uma resposta, uma conclusão ou uma solução. Mas Euphoria tenta ir além nesse sentido.

    Pouco depois do lançamento da serie, em 2019, o psicanalista Slavoj Žižek escreveu um artigo sobre sexo nos tempos pandêmicos que vivemos, e a crise no setor da intimidade que o vírus apenas escancarou, já que não íamos muito bem nesta seara, muito antes disso devido a “progressiva digitalização das nossas vidas”, onde adolescentes gastam muito mais tempo navegando pela internet que explorando a sua sexualidade. Daí ele analisa Euphoria como uma verdade dissoluta da realidade desses jovens e “estranhamente anacrônica – revelando ser mais um exercício de nostalgia de meia-idade a respeito de quão depravadas as gerações mais jovens já foram”, em suas palavras. 

    Parece que Sam Lavinson, o diretor da serie, leu esse artigo, porque intimidade é uma causa que a série parece defender nas entrelinhas dessa segunda temporada. Sendo um retrato das dificuldades de uma geração em entender o próprio desejo, criar vínculos, laços, tocar e olhar o outro, Euphoria evolui o enredo para trazer um outro sintoma: a traição. Se o personagem não trai a si mesmo, trai o melhor amigo, a namorada, a família e as próprias crenças, quando elas existem. E quando rola sexo, tem sempre uma fantasia sobreposta no ato em si, uma fantasia do eu, uma imagem pornográfica ou tudo isso junto.

    Cassie Howard (Sydney Sweeney) ganha destaque nesse ponto específico. Depois de um término complicado com o namorado Chris (Algee Smith), ela salta de cabelos ao vento para o colo do american psycho com daddy issues Nate (Jacob Elordi), ex da melhor amiga Maddy (Alexa Demie). Talvez esse seja o desdobramento que o público mais anseia nas redes, principalmente aqui no Brasil, onde veneramos um novelão. A personagem interpretada por Sweeney, de repente, parece obcecada por um destino perigoso e perdida em crises de identidade: ela muda de estilo para imitar a amiga, faz ligações às escondidas, encontros clandestinos, e as coisas todas no entorno, incluindo sua família e amigas, parecem perder peso para uma nova relação tóxica que afeta a ela e a Nate em segredo.

    Levinson já deixou claro, em outras oportunidades, que não se esforça em comparar ou reproduzir o que outras séries teen fizeram ou deixaram de fazer em sua estrutura narrativa. Mas a situação de Cassie, Rue, Maddy, Kat (Barbie Ferreira) e outras figuras desta temporada lembram “personagens femininas complexas” que, se não estão na literatura comercial, estão nas telas ou em ambos: Marissa Cooper, de The O.C, se odeia, tem sérios problemas com a mãe materialista e vive com o entusiasmo de uma planta, mesmo com todos os privilégios de uma vida como socialite de um condado praiano da Califórnia. Na costa leste, Serena Van der Woodsen, de Gossip Girl, enfrenta o grande problema de ser uma musa. Ela arruma encrenca com todo mundo por isso, então escolhe se afogar em margaritas, cocaína e em garotos ricos e problemáticos, incluindo o namorado da melhor amiga Blair. 

    Longe de mim trair Levinson com essa comparação, mas é curioso como a narrativa eufórica é uma estranha familiar no reino televisivo de Hollywood. Quando ela escolhe falar sobre problemas da consciência individual cristalizados por causa da TV ou das mídias sociais, é praticamente metalinguística: ela só existe porque opera na televisão e se vale das plataformas digitais para engajar um público cada vez maior e mais empático com as personagens.

    Em seu ensaio “Heroínas Puras”, onde analisa a evolução de personagens da literatura da infância à idade adulta, a autora Jia Tolentino comenta que “nas séries românticas mais conhecidas a opacidade do futuro (e sua subsequente inevitabilidade) está relacionada à personalidade da heroína; elas estão sempre à espera de assumir a pungência da vida de outra pessoa”.

    No caso de Cassie, essa “outra pessoa” é um homem, que em Euphoria aparecem desnudados frequentemente, como já falamos. Marissa e Serena, das catacumbas do show business adolescente, já eram garotas vulneráveis e deprimidas antes de conhecerem homens problemáticos (e por isso mesmo interessantes) pelos quais se apaixonam, e é por isso mesmo que seu futuro acaba por ser determinado pelos problemas extremos desses homens.

    Cassie Howard (Sydney Sweeney) em cena de euphoria

    Cassie Howard (Sydney Sweeney) em cena de euphoria

    Cassie trai sua amizade mais antiga por um destino incerto com um homem mais incerto ainda. Enquanto Nate tem fantasias sexuais com Maddy, Cassie e Jules (Hunter Schafer), mas essa última, não aparece performática na luz como as outras. Aparece nas sombras e nos flashes, no sigilo, como se nem ele soubesse que ela está lá, atuando em sua performance sexual durante o sexo com a garota que ele engana. E não é que ele está enganado também?

    No caso do improvável casal Rue e Jules, é evidente que os fatores são outros: uma procura amor em meio à abstinência, a outra quer ser amada por quem é. Jules é a única personagem transgênero da série, uma subjetividade que Sam Levinson trabalhou com mais afinco na primeira temporada. Agora que voltou pra vida de Rue, depois de um término que também respinga nos vícios da protagonista, parece perdida entre o que esse relacionamento representa na ideia e o que ele de fato é na realidade.

    Sexo explícito puro e simples dá lugar a um outro exposed: os problemas e frustrações ao tentar fazer sexo consensual a dois é a grande nudez de todos os personagens. O casal Jules e Rue, na preliminar, é pura fantasia: beijos intensos de reconciliação, com foco de luz nas trocas de carinho e muito cinema, muita arte. Mas quando tentam dar prazer uma à outra, a coisa simplesmente não funciona. É química? É falta de tesão? Desinteresse?

    Não acredito que seja falta de amor por parte de Rue, a que mais sucumbe. Talvez libido. A personagem de Zendaya sofre de uma depressão que só não é paralisante por causa das drogas: essas que liberam sua consciência, geram algum sentimento de gratificação, autoconservação e onipotência. Fictícias, pois a depressão continua lá.

    No entanto, há outras coisas que Euphoria parece incorporar na tentativa de se diferenciar das outras. Primeiro a estética. Desde sua estréia, a série é esteticamente nostálgica, o que valida a opinião de Žižek e confirma a teoria da repetição presente nas histórias das heroínas que conhecemos, comentadas por Tolentino: ela jorra saudosismo pelos poros quando veste anos 90, canta 70, dança 2020. Se na primeira temporada tínhamos a forte presença das luzes néon, do abuso de glitter escorrendo pelos olhos, efeitos molhados e superiluminados, a segunda temporada é escura, e por isso mesmo um pouco mais sombria.

    Tem a ver com como é feita: a gravação analógica, em VHS, traz o efeito granulado ideal para qualquer filme clássico das últimas décadas, bem dramática. As luzes parecem mais objetivas dessa vez: operam como elemento visual da narrativa de forma estratégica. Focam na cena, e nas construções cruzadas das personagens, como se fossem flagras repentinos da narração ora na primeira, ora na terceira pessoa onisciente de Rue. Às vezes ela se implica na situação, às vezes ela se isola e se exime, apenas narrando os fatos, como se não fizesse parte da “traição” ou não se importasse. Tudo é reflexo, miragem e blur: foca com a luz, mas desfoca em seguida e embaça a cena, deixa delirante, com aspecto de sonho. Borrar as fronteiras do que é real e ficção é também sintoma de uma consciência afetada pela imagem, não é mesmo? 

    E para o horror e o autoengano, os espelhos são elementos que também aparecem em cena, e é provocativo. Kat, no episódio 2, é assombrada por um exército de influencers do bem estar e do autocuidado; logo ela, que se odeia e odeia o próprio corpo. Ela se encolhe na cama, isolada e sufocada pela ideia de ficar bem, ou de se amar ou de amar o namorado. Mas logo depois encontra as amigas no boliche toda produzida, e com Ethan (Austin Abrams), o boy que a ama; enquanto Cassie, mais adiante, é transformada em obra de arte digna de Louvre e feeds de Instagram, como mostra a cena da sua imagem não refletida, mas dentro de um espelho, entre as guirlandas que Nate deu a ela em segredo. Cabelo impecável, pele e olhos reluzentes, em lágrimas no episódio 4.  

    “Na multidão solitária, a paixão tem cedido lugar ao êxtase, à vertigem. O medo do segredo, da intimidade, da proximidade amorosa associam-se aos sofrimentos de perda pessoal e de ódio por si mesmo e pelos outros”, escreve Muniz Sodré, sociólogo, quando analisa os efeitos da virtualização, principalmente da TV, na consciência individual. Segundo o autor, se não conseguimos diferenciar a realidade concreta de um certo imaginário virtual, tendemos a enfraquecer os laços simbólicos e nos isolarmos cada vez mais. De novo, a gestão da intimidade. Se eu amo, eu amo o outro ou pulso numa fantasia do eu? Se me apaixono, é pelo outro ou pela minha própria imagem projetada numa ficção da qual sou protagonista? Parece que Euphoria faz essas perguntas difíceis. 

    Mesmo quando a série parece invocar redenção, não é como se estivessem todos denunciando o abuso de substâncias e dando aval para uma guerra às drogas. Tem mais a ver com a exposição dos vícios presentes em todos os personagens, e vale observar que droga não é apenas alucinógeno químico ou vegetal, mas tudo que funcione à “narcísica passividade oral”, como vai dizer Sodré.

    Por exemplo, a música em escala massiva, enquanto pura exacerbação dos sentidos, participa da estrutura dos entorpecentes, o que me faz pensar na função da trilha sonora (tão boa!) que atravessa a série inteira: serve de escape, na maioria das vezes, ou de retrospecto, como é o caso de Cal, o pai que é hétero em casa, sugar daddy lá fora, ao som de Never Tear Us Apart do INXS, dançando nostálgico na mesma juke box onde dançou com um antigo amor homoafetivo, nos anos 80. 

    Esse antro de químicos, entorpecentes, estimulantes pairam no ar ainda mais incisivos, e dão uma “liberdade” para certa fuga na temporada. Como muitas séries da atualidade, Euphoria escapa do contexto pandêmico e da crise global. Foge também de um certo compromisso em “panfletar” o social.

    Em uma cena da infância de Fezco, sua avó diz a ele para esconder cocaína embalada na cueca porque nenhum policial desconfiaria de um garoto de dez anos. Sutil, especialmente num tempo em que a violência policial contra negros, sobretudo crianças negras, já que é o tema, são postas na mesa. A vida de Fezco e do irmão mais novo não é fácil: cheia de abandono e brutalidade. E só fica pior. Mas ele não é pego, e Euphoria não precisa “entregar” o porquê.  

    Penso que se a série cumprisse as diretrizes do engajamento com as causas, ela não teria o teor que tem. Ela teria que ser, talvez, mais tendenciosa sobre o consumo de drogas, mais “didática”, e menos complexa. A sexualidade e seus tabus são postas em cheque, uma sexualidade exausta, capenga, cheia de constrangimentos, dor e ressentimentos — o que vai cumprir um objetivo, se é que posso chamar assim, de tornar a representatividade mais palatável ao humano e menos superficial nas inclusões por cotas publicitárias.

    Jules (Hunter Schafer) em euphoria

    Jules (Hunter Schafer) em euphoria

    A identidade é colada no rosto à força em Euphoria. Uns colam masculinidade, outros colam a deusa-perfeita-nunca-errou. Uns colam abstinência, outros empatia. Só vamos descobrir que a cola é falsa quando a série se aproxima da intimidade de cada um: mais nudez, e ninguém tá bem. Será que é assim que a gente faz? Parece uma brecha para pensar, sem muitas conclusões precipitadas.

    É importante lembrar que Euphoria parte do real, de questões e desejos reais. Dá para ir longe nas análises psicanalíticas sobre imagem, narcisismo e desejo. Mas não deixa de ser um drama televisivo tão fictício quanto as outras da qual se diferencia por sua metalinguagem. Nesse “Rue-niverse”, a consciência individual é afetada pela dificuldade em realizar o amor num mundo de falsas esperanças. A protagonista dá uma palhinha sobre isso quando justifica sua recaída numa cena: ela menciona a necessidade das pessoas pelo transcendental, o místico. Se tudo vai mal, é melhor ir pra igreja, ou tomar Ayahuasca, visitar um templo, tentar o êxtase ou ver tevê, ela diz.

    Sei que parte do sucesso da série se dá pela moda, pela expressão sublimada no estilo de cada personagem, com a já clássica make assinada por Doniella Davy para causar impacto [pela imagem] enquanto Lavinson constrói [pela narrativa] os sentimentos borrados difíceis de olhar, mas tão fáceis de compartilhar

    Nem todo mundo se identifica com as situações narradas por Rue sobre ela mesma e seus amigos, mas por causa do estilo, transformamos Euphoria num “fenômeno universal”. É estético antes mesmo do trauma, seu principal combustível. E estamos obcecados por isso.

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