FFW Entrevista Regina Guerreiro: “Não há lugar para os bonzinhos (na moda)”.
Editora e jornalista icônica da moda nacional, ela fala ao FFW sobre sua vida, sua visão da indústria e o que acha de alguns criadores brasileiros.
FFW Entrevista Regina Guerreiro: “Não há lugar para os bonzinhos (na moda)”.
Editora e jornalista icônica da moda nacional, ela fala ao FFW sobre sua vida, sua visão da indústria e o que acha de alguns criadores brasileiros.
Por Patrícia Favalle
*Entrevista publicada originalmente no FFW em janeiro de 2010*
Na dialética do pensador Nicolau Maquiavel, o respeito só pode ser conquistado pelo medo, pelo talento ou pela soma destes dois predicados. Num enredo passado no Brasil de décadas atrás, onde a mulher estava confinada ao segundo plano, trocar o conforto do home sweet home para se atrever no mercado de trabalho só poderia ser coisa de feminista apimentada: Regina Guerreiro veio mesmo pra ficar.
À primeira vista, a elegância, a fala articulada e objetiva, e a altivez de seus passos a tornam mais inatingível do que realmente é. Por dentro de sua natureza intempestiva, inquieta e ousada – com touro em gêmeos –, ainda que ela confirme a vocação para debochar do óbvio, o mito é consumido por alguns sentimentos bem comuns aos simples mortais. “Perdi muitas noites de sono e chorei o suficiente para me fortalecer”, avisa.
Dona de seus atos e também de suas escolhas, é o tempo que lhe parece artigo de luxo, e talvez por não domar [ainda] os ponteiros do relógio, ela seja tão intensa. No apartamento localizado no tradicional bairro de Higienópolis, em São Paulo, a anfitriã se sente à vontade num confortável caftan marroquino e de pés descalços, abandonando qualquer alusão aos sapatinhos Prada. Sem meias-palavras e outros pudores, ela abriu as portas de sua ao FFW para contar como é ser Regina Guerreiro.
Como você estreou na moda?
Eu sou jornalista e na época trabalhava como assistente do Mario Donato fazendo pesquisas para a televisão. Depois fui para a revista “Manequim”, da Editora Abril. Embora toda a mulher goste de roupa e acredite que entenda de moda, eu achava uma coisa menor. Foi só quando vi o que acontecia num estúdio e o que podia ser feito com cada peça que me apaixonei. Era um momento muito saboroso. Ainda havia curiosidade e o desafio de fazer as coisas não serem tão evidentes.
Evidentes?
Sim, faziam-se coisas duvidosas. Depois que sai da Abril, criei a agência de moda batizada de Choc (o contrário de chic). Ali fui precursora; a primeira a falar da Lycra, a fazer um audiovisual [para a Rhodia], e tudo sem nenhuma experiência. Passado um período, estagiei na “Harper’s Bazaar”, circulei no mercado e só então assumi a “Vogue Brasil”, onde permaneci por 14 anos. Existia um campo enorme de realização e eu soube explorar esta ótica, mas precisei fugir do trenchcoat da Barbie e do Rolex poderoso, mostrando que a moda podia ser uma consequência do comportamento, de um desejo e até do poder econômico.
O que você fez então?
Apostei no “Barbante em vez do brilhante”. [Risos]. É claro que isso foi muito polêmico, pois a “Vogue Brasil” se dirigia a uma mulher que não concordava com isso. Foi difícil, as roupas eram horrendas e malfeitas, mas tenho certeza que fiz um trabalho de vanguarda e consegui mostrar a moda de um jeito novo.
Não se fazia moda no Brasil…
Acho que ainda não se faz! Mas naquele tempo não se fazia roupa, o que é ainda mais grave.
E como resolveu isso?
Sempre acreditei no close, e como a roupa era péssima, o negócio era focar a estampa, o detalhe. O primeiro editorial que fiz pra “Vogue Brasil”, com fotos do Miro, causou mal-estar na direção da revista. O Luís Carta me disse que estava desapontado – e eu entendi que estava no caminho certo.
O que ainda há para ser feito?
Tudo. Ninguém aposta na mulher atual. Parece que existe um medo coletivo de errar. A mulher do século 21 tem uma estética própria, mas os estilistas insistem em colocá-la como ícone de décadas anteriores, onde os contextos históricos já perderam o sentido.
Como é esta mulher contemporânea?
Ao contrário da liberação sexual, da revolução feminista e de tantos casamentos desfeitos por causa desta emancipação, estamos num período que, lamentavelmente, o corpo venceu a cabeça. O homem prefere a mulher bonita à inteligente. É preciso rever os conceitos. Esta nova mulher está no comando de grandes empresas, da família. Ela é independente, sensual, profissional e poderosa.
“A moda hoje virou um caos internacionalizado. Perdeu-se o gosto pelo indivíduo. O mundo se agrupou em fatias comportamentais, intituladas de tribos. E os sonhos se transformaram em números.”
A que você atribui esse culto ao corpo?
Esta supervalorização é uma consequência da moda.
E quando começou esse movimento?
Nos anos 80… Só alguns estilistas japoneses, caso do Yohji Yamamoto e do Issey Miyake, tentavam mostrar o lado B do corpo: o impalpável, o indecifrável. Mas era “papo-cabeça” demais e, naturalmente, venceu a perua do Versace!
Qual foi o impacto dessa vitória?
O exagero.
Como você descreveria a moda nos últimos trinta anos?
Resumiria aos anos 80, quando aconteceram as últimas mudanças dignas de serem lembradas. A cada desfile saíamos impressionados, era um show. Dava pra dizer, “agora mudou isso ou aquilo”. Havia grandes experimentações, a exemplo do trabalho assinado pelo [Jean Paul] Gaultier. Depois veio o minimalismo, que se tornou uma porta sem saída desde a década de 90.
E hoje, nada muda?
O problema é justamente o oposto. Muda demais, muda tudo ao mesmo tempo. Virou um caos internacionalizado. Perdeu-se o gosto pelo indivíduo. O mundo se agrupou em fatias comportamentais, intituladas de tribos. E os sonhos se transformaram em números.
Como explica isso?
O comércio do mundo te empurra para esta dinâmica. Passei por uma experiência recente, onde eu tinha 8 mil reais para fazer uma camiseta que custaria 25 ou 30 reais no mercado. Com este saldo, o que sobra para investir numa área de criação ou em qualidade? Zero! A ideia é zerar o custo pra vender. Então funciona mais ou menos assim: os abastados compram na Daslu, a classe média fica infeliz pela falta de opção e os ascendentes das camadas mais populares ficam satisfeitos por comprarem na TNG!
Quais as qualidades de um bom editor de moda?
A paixão, a coragem e a teima de tornar cada momento o mais bonito possível. Não há lugar para os bonzinhos.
Você era considerada uma pessoa muito exigente…
E eu realmente era – e ainda sou. [Risos]. Demorei a aceitar certas diferenças, achava que as pessoas não acompanhavam o que eu queria e isso criava lacunas enormes. Claro que todo mundo quer ser amado, aceito e admirado. Foi muito complicado lidar com os julgamentos. Mas eu sobrevivi.
Você ainda acredita no jornalismo e na crítica de moda?
Acho que nem tudo está perdido. A geração que veio depois da minha tentou de todas as formas apagar o inapagável. Era uma época em que o jornalismo corria atrás da informação – nós íamos visitar as fábricas, os ateliês… Hoje, a notícia já vem pronta, embalada e entregue nas redações pelas assessorias de imprensa. Os críticos confundem o lado humano com o lado profissional e isso prejudica a análise daquilo que é apresentado na passarela. É necessário ter sabedoria para criticar. Desse segmento, o *Alcino Leite [da Folha de S. Paulo] se diferencia pela bagagem cultural e refinamento textual.
“Sustentabilidade não combina com moda. A moda requer adequação, mas não pode ser limitada.”
Quais os nomes que ainda vão dar o que falar?
Entre os stylists, aposto no Maurício Ianês e na Paula Lang, que foi minha assistente na “Elle”. Nas passarelas, Calvin Klein ainda ditará muita tendência. *Francisco Costa é outro que tem talento.
Um pecado da moda?
Transmitir sedução quando o momento exige credibilidade. Não dá pra colocar uma executiva com os seios pulando pra fora!
Como é a mulher chic?
É aquela que não tem medo de ser ela mesma. A roupa parte dela, não da tribo. Antigamente o chic era ser. Há cinco minutos o chic era ter. E agora o chic é aparecer. A mulher chic é a que consegue usar o barbante no lugar do brilhante, sem perder o estilo.
Sustentabilidade combina com moda?
Não. A moda requer adequação, mas não pode ser limitada.
O Brasil virou hit?
A grande invenção da moda brasileira foi a tanga indígena. Desde então o Brasil é venerado no exterior como a indústria do corpo perfeito. Mas como acontece em toda narrativa que contrapõe a inteligência a favor da beleza, o vazio imperou. Então acabamos rotulados e inferiorizados.
Quem é Regina Guerreiro?
Eu fui alguém muito solitária, que estudou num colégio de freiras e aprendeu a brincar com o imaginário. Fui preparada para ser dondoca, dona-de-casa exemplar. [Depois de uma breve pausa, ela prossegue em tom visceral]. Sou alguém de palavra, que acredita na fragilidade da magia e persegue a perfeição.
Quais os seus projetos?
Domar o tempo e escrever a minha biografia. Depois acho que sair de cena em grande estilo seria uma boa ideia. [Risos]. Hum, seria algo como me atirar no rio Sena com um vestido de altacostura!
RAPIDINHAS:
Paulo Borges. “Foi meu assistente. É alguém de uma visão incrível de mercado. O considero um businessman”.
Alexandre Herchcovitch. “Sacudiu o mercado e já mostrou coisas incríveis. Tem talentos especiais, mas preferia quando ele vestia travestis”.
Fause Haten. “É um amor de pessoa, mas considero a proposta dele confusa e duvidosa”.
Ronaldo Fraga. “Adoro. É criativo, conceitual, visionário. Ele entende como o trabalho de moda deve ser feito, só falta uma pitada de ousadia, de corpo. A mulher do Ronaldo é pudica. Ninguém quer transar com esta mulher intelectual e sem graça”.
Lino Villaventura. “Talentoso em termos de trabalhos artesanais e estudo de tramas. Mas ele não é estilista, é figurinista. A mulher que o Lino veste é impactante, teatral”.
Gloria Coelho. “É uma batalhadora. A roupa dela é extremamente bem feita e atemporal. Ela tem estilo e bom-gosto”.
Reinaldo Lourenço. “As pessoas mostram na roupa o que elas realmente são”.
André Lima. “Quando ele fazia aquela mulher cheia de estampa e explosiva, havia certo charme. Agora, ele faz volumes estrambóticos e mal resolvidos. Gosto cada vez menos”.
*Dudu Bertholini. “Respeito muito do trabalho de pesquisa e as formas limpas que ele cria. Veste a melhor mulher-balneário do país”.
Oskar Metsavaht. “É um homem curioso, que tem tiradas de simplicidade memoráveis. O moleton estruturado, por exemplo, foi a sensação da última temporada”.
Isabela Capeto. “O começo foi um desbunde, agora não dá mais. O forte dela é a decoração, mas ela vende bem no exterior”.
Novos talentos. “Os novos nem chegam a desfilar suas coleções. É um mercado restrito. Gostaria muito de ter acesso a essa gente (pode colocar o meu e-mail: rgmguerreiro@gmail.com). Já entre os mais jovens, o *Jefferson Kulig me parece interessante. Preciso conhecer mais de perto o que ele leva pra loja, por que geralmente não gosto daquilo que ele apresenta na passarela”.
Gisele Bündchen. “Versátil, mas não consigo entender essa ligação dela com determinadas marcas”.
Modelo-revelação. “Parei na época das grandes divas, como a Linda Evangelista. Hoje as meninas são todas loiras, de olhos azuis, muito magras e sem graça”.
Chic era ser… “Como a ex-primeira-dama Maria Teresa Fontela Goulart”.
Ser Regina Guerreiro é… “Poder tudo”, responde seu assistente, Ray Mendel, acenando para o fim da entrevista.
Notas:
*Alcino era editor da moda da Folha de SP na época
*O estilista mineiro Francisco Costa foi diretor artístico da Calvin Klein Collection até 2016
*O estilista curitibano Jefferson Kulig faleceu em 2022
*Dudu Bertholini assinava a aclamada marca Neon, ao lado de Rita Comparato