Muito além do figurino: Como ‘‘Um Completo Desconhecido’’ recria a identidade visual de Bob Dylan
Entre anotações, arquivos e um olhar meticuloso, Arianne Phillips reconstrói o estilo icônico de Bob Dylan no cinema.
Muito além do figurino: Como ‘‘Um Completo Desconhecido’’ recria a identidade visual de Bob Dylan
Entre anotações, arquivos e um olhar meticuloso, Arianne Phillips reconstrói o estilo icônico de Bob Dylan no cinema.
Poucos artistas transcenderam sua arte para se tornarem um arquétipo estético como Bob Dylan. Se sua música narrou os anseios de uma geração, seu estilo vestiu a revolução. Em ‘‘Um Completo Desconhecido’’, dirigido por James Mangold, a premiada figurinista Arianne Phillips tinha o desafio de recriar não apenas roupas, mas o DNA visual de um Dylan que existiu entre 1961 e 1965. São apenas quatro anos, mas com mudanças drásticas o suficiente para torná-los um microcosmo da transição do folk romântico para a irreverência do rock.
O filme, que concorre ao Oscar em 2025 com seis indicações – incluindo Melhor Figurino, categoria em que concorre com ‘‘Conclave’’, ‘‘Gladiador 2’’, ‘‘Nosferatu’’ e ‘‘Wicked’’ -, reforça a importância do trabalho de Phillips na construção de uma narrativa estética tão impactante quanto a musical. Responsável por traduzir identidades visuais marcantes ao longo de sua carreira, a figurinista passou anos vestindo Madonna em turnês e videoclipes, e agora usa esse olhar meticuloso para vestir um dos maiores mitos da música. Um editor da Rolling Stone certa vez contou a ela um detalhe curioso: ‘‘Os únicos dois artistas que já tiveram aprovação de foto para a capa da revista foram Bob Dylan e Madonna.’’
Três Dylans, um só filme
Para a figurinista, Dylan desse período quase parecia três personagens diferentes habitando um mesmo corpo. No início, um jovem tímido, recém-chegado a Nova York, com sobreposições volumosas e suéteres que pareciam emprestados de alguém maior. Depois, à medida que sua voz ganhava força na cena folk, a silhueta ficava mais ajustada, e os casacos pesados davam lugar a jaquetas curtas de camurça. Por fim, em 1965, Dylan já carregava um ar mais magro e estilizado, adotando cortes mais enxutos e um visual que flertava com a estética beatnik – o couro e os óculos escuros antecipando a guinada elétrica que redefiniria sua carreira.
Mais que figurino, uma linha do tempo vestível
Se recriar Dylan foi um desafio, manter a precisão histórica foi uma missão ainda maior. A pesquisa de Phillips envolveu um extenso banco de referências, criado digitalmente para que toda a equipe pudesse compartilhar informações e garantir coerência na linha temporal dos figurinos. Fotografias, filmagens de arquivo e relatos de pessoas próximas ao cantor ajudaram a capturar detalhes que transformam roupas em narrativas. Não bastava simplesmente reproduzir um look; era essencial entender como Dylan misturava peças sem pretensão e como sua identidade visual se formava em camadas, de forma quase instintiva.

180 araras de roupas para os cinco mil figurantes do filme.
Essa imersão começou em 2019, quando James Mangold a convidou para o projeto. Na época, o diretor ainda não tinha um roteiro fechado, mas se baseava no livro ‘‘Dylan Goes Electric’’, de Elijah Wald. Durante a pandemia, com as filmagens pausadas, Phillips aproveitou para aprofundar sua pesquisa. Ela revisitou documentários como ‘‘Don’t Look Back’’ e ‘‘The Other Side of the Mirror: Bob Dylan at the Newport Folk Festival’’, além de ler ‘‘A Freewheelin’ Time’’, as memórias de Suze Rotolo.
Os jeans e os sapatos contam histórias
Um dos elementos centrais dessa identidade sempre foram os jeans. Desde o início do filme, Dylan aparece vestindo calças dungarees, similares às usadas por pintores, uma referência direta à capa do álbum ‘‘The Freewheelin’ Bob Dylan’’ (1963). Phillips trabalhou com o arquivo da Levi’s para recriar os jeans exatos da época, incluindo um detalhe curioso: Suze Rotolo, namorada de Dylan naquele período, inseriu uma peça extra de denim na perna da calça para deixá-la mais flare e encaixar melhor sobre as botas. Essa versão customizada dos Levi’s 501 agora será lançada como parte de uma coleção especial da marca inspirada no filme. O mesmo cuidado se estendeu para os sapatos – de botas de trabalho desgastadas no início da trama até as botas Chelsea adquiridas na Inglaterra, evidenciando a influência dos Beatles em seu estilo.
O guarda-roupa de uma era
O volume de figurinos é impressionante: 67 looks apenas para Timothée Chalamet como Dylan, somados a mais de 120 figurinos principais e cerca de 5.000 figurantes, todos vestindo peças que respeitam rigorosamente a moda da época. A maioria das roupas foi feita sob medida, com poucos itens vintage, garantindo fidelidade ao personagem. O filme evita anacronismos e busca representar, em cada tecido, corte e textura, a evolução de um jovem artista que redefiniu a própria estética folk.
Um elenco vestido para o papel
O trabalho da figurinista também se estendeu para os personagens femininos. Monica Barbaro, que interpreta Joan Baez, tem um figurino que reflete sua transição de cantora folk para uma inspiração de estilo. Já Elle Fanning, no papel de Sylvie (inspirada em Suze Rotolo), usa looks que equilibram feminilidade e irreverência, reforçando sua ligação com política e arte. Para Phillips, Suze foi uma grande influência para Dylan, e seu estilo sofisticado, mas despretensioso, precisava ser representado com autenticidade. Entre os figurinos mais marcantes da personagem, está um casaco de pele sintética, idêntico ao descrito nas memórias de Rotolo como um presente de Dylan.
Outro personagem fundamental na construção estética do filme é Johnny Cash, interpretado por Boyd Holbrook. Para Phillips, trabalhar nesse figurino foi quase um retorno a um território familiar, já que ela também assinou o figurino de ‘‘Walk the Line’’ (2005). Dylan sempre teve Cash como uma de suas referências de estilo, especialmente na adoção do preto como parte de sua identidade visual, algo que a figurinista fez questão de destacar no filme. Depois de Woody Guthrie, era Johnny Cash quem representava para Dylan a personificação de um artista americano em todos os sentidos, inclusive na maneira de se vestir.
Muito mais do que uma reprodução fiel
Mas se os figurinos precisavam ser historicamente fiéis, a interpretação de Dylan como personagem trouxe um elemento extra à produção. Para Phillips, Dylan sempre cultivou uma mitologia própria, o que permitiu ao filme certa flexibilidade na forma como sua identidade visual foi retratada. Essa ideia fica evidente até mesmo nas declarações do próprio cantor: recentemente, Dylan fez um post no X afirmando que Timothée Chalamet é um ator brilhante e que certamente será completamente convincente interpretando ele mesmo – ou uma versão mais jovem dele, ou talvez algum outro Dylan. Essa fluidez na forma como o artista enxerga a si mesmo reforça o fato de que o figurino do filme não se trata apenas de uma reprodução, mas de uma recriação artística.
No fim das contas, ‘‘Um Completo Desconhecido’’ não é apenas um filme sobre Bob Dylan, mas sobre uma era em que moda e música andavam de mãos dadas, e em que um casaco de couro e um par de botas podiam dizer tanto quanto uma letra de protesto. Arianne Phillips prova mais uma vez que figurino é história, e que algumas roupas têm mais a dizer do que parece.