Lewis Carroll, Tim Burton, Salvador Dalí, Jacob e Wilhelm Grimm e Gustave Doré. Tais referências parecem encaixar-se de forma perfeita na obra lúdica – e quase alucinógena – do alagoano Pedro Lucena, de 34 anos. Por meio de suas ilustrações, repletas de elementos antropomórficos, misticismo e alusões a contos de fadas, o artista plástico transita entre a riqueza do regionalismo nordestino e a poética universal da literatura. Lucena, que surpreendentemente é graduado em Direito, já desenvolveu projetos para publicações da editora Abril e de revistas como “Zupi”, “Metrópole” e a israelense “A5”, além de uma série de imagens para o espetáculo teatral “Alice”, da Companhia do Chapéu.
Pedro Lucena ©Renata Voss
A fantasia que permeia o universo inspiracional de Lucena – e que em suas ilustrações ultrapassam a estética costumeira da temática –, converteram-no em uma fonte para autores de livros infantis, com quem já contribuiu em distintas ocasiões, dentre as quais se destacam “O Diário de Dandara”, de Cláudia Lins, e “Os Segredos da Mata”, de Simone Cavalcante. Em novembro, o artista plástico inaugura sua nova exposição, intitulada “Ciscos”, que apresenta um diálogo entre os poemas do escritor cuiabano Manoel de Barros e a expressão artística do povoado da Ilha do Ferro, localizado no município de Pão de Açúcar, em Alagoas.
O FFW esbarrou com o trabalho de Lucena por meio de seu portfólio virtual, disponibilizado no Flickr e no Cargo Collective, e conversou com o artista sobre sua trajetória profissional, suas referências e seus projetos para o futuro. Vale a pena conhecer mais esse talento multicultural, que é apenas mais uma prova da riqueza do Brasil.
Qual a sua formação profissional e com quantos anos começou a ilustrar? Sofreu influência de algum membro da família?
Minha formação é em Direito, mas muito, muito antes de pensar em ir para uma faculdade de Direito eu já desenhava; quando eu tinha dois anos e meio, comecei nas paredes da casa de uma tia minha, e quando minha mãe se descuidava também desenhava nas paredes da casa dela. A família do meu pai sempre foi artística, uma tia minha pintava, minha avó era meio estilista e a minha maior influência, meu pai, desenhava muito, eu achava que ele era o melhor desenhista do mundo.
Ilustração que integra a mostra “Ciscos”, que inaugura em novembro ©Pedro Lucena
Como chegou ao estilo de ilustração que adota agora? Acredita que já desenvolveu uma identidade própria?
Eu não consigo traçar a trajetória que trilhei para chegar ao estilo que tenho hoje, e acredito que nenhum artista tenha isso tão claro. Bem, pode haver aquele ou aquela que tenha, mas para mim é difícil pensar nisso. Essa busca pelo estilo próprio que todo artista procura é contínua, não para nunca, mas mesmo assim eu acredito que já tenho uma identidade própria que quer se renovar mais e mais, evoluir sempre, aglomerar, mixar.
Como é o seu processo criativo? Você normalmente tem alguma ideia em mente ou as coisas fluem a partir dos primeiros rabiscos?
Gosto de trabalhar com lápis e papel, sentir o branco da folha se transformando, gosto da relação motora e as saídas que a gente consegue dar ao desenho, as técnicas sendo aplicadas. Uso muito pouco o computador, geralmente para cortar uma imagem ou ajustar cor, luz, contraste, brilho, essas coisas. Dependendo do que eu tenho que fazer o processo é diferente. Se for um trabalho para mim, muitas vezes nem uso borracha, e a imagem está na cabeça, só esperando ir para o papel. Mas se é um trabalho encomendado, a coisa muda de figura, nesse caso já é mais frequente o uso de borracha e lápis para que a ilustração tenha a cara que o cliente quer.
“Cidade dos pássaros” ©Pedro Lucena
Quando você desenha para você o erro te mostra outras possibilidades e você não precisa pedir a aprovação de ninguém, que é o que acontece quando você está trabalhando em um projeto como um profissional da ilustração. Eu gosto muito de ver processos criativos, aprende-se muito com isso, analisar todo o caminho que te fez chegar naquele ponto. E isso você vê tanto num trabalho para um cliente como em um projeto pessoal.
Boa parte das suas ilustrações é em preto e branco, é uma preferência? Quando você sente necessidade de utilizar a cor?
Eu gosto muito dos trabalhos em preto e branco, gosto em especial pelo fato de que as pessoas podem colocar suas próprias cores quando elas olham para eles. Mas também gosto de pontuar meus trabalhos com cores, fazer com que essas corem dialoguem com as formas do desenho, que estejam dentro da mensagem que a imagem traz; na verdade eu sempre busco que essas cores signifiquem mais do que possam parecer, por isso pesquiso a simbologia das cores que uso. Ultimamente estou até mais livre para usá-las.
Quais materiais você usa, em geral?
Basicamente nanquim, aquarela, acrílica e tinta metálica. Sempre desenho sobre papel.
“O abismo de nossos corações” ©Pedro Lucena
Suas ilustrações têm quê de surrealismo; como você busca essa influência? Quais suas principais fontes de inspiração e quais artistas te influenciaram ao longo da sua carreira?
Gosto muito do surrealismo, o que mais gosto nesse estilo é que as imagens podem te surpreender, podem mostrar a você que há algo mais lá onde você achava que só havia uma coisa. Gosto muito do surrealismo aplicado à fotografia e à poesia. Busco inspiração nas artes, na literatura, na música, nos filmes, mas também uso o cotidiano, o prosaico. Há muitas histórias para serem contadas no que acontece no dia a dia, ver as pessoas nas ruas interagindo com o meio, isso é um ótimo exercício. Gosto das crianças, o universo dos pequenos dá muito pano para manga, muito imagético, fantasioso. E amo a arte de rua, o grafite é algo que me inspira demais, apesar de não grafitar eu me deleito vendo essas obras-primas nas ruas. Mas devo dizer que Maceió precisa de muito mais paredes pintadas.
Comecei a desenhar porque lia gibi, os da Disney, em especial, mas também muito Maurício de Sousa e quase nenhum super-herói. Mas havia uma coisa que eu via muito antes desses personagens infantis, que eram as figuras criadas por Gustave Doré para o Inferno de Dante [da primeira parte de “Divina Comédia”], e aquilo me fascinava, intrigava-me e me deixava com muito medo, mas eu amava ver aquele bico de pena impecável, a anatomia das almas e demônios que povoam o inferno criado por Doré. Junto com os quadrinhos eu também via os livros de arte de meu pai, os grandes pintores, e posso dizer que guardo profundo amor pelas obras de Van Gogh, Ingrés, Hopper, Vermeer, Otto Dix, Klimt, Schiele, Velasquéz, El Greco, Magrite e Toulouse-Lautrec. Esse último enfeitava a sala da casa em que morei na minha primeira infância. Em nossa casa tínhamos uma gravura de uma cena de cabaré clássica do pintor.
Nos campos da ilustração, artes gráficas e grafite, eu sofri e sofro influência do trabalho de muita gente boa que eu vi e vejo sempre, só para citar alguns: Ulf K, Escher, Rebecca Dautremer, Shiko, Renato Alarcão, Os Gêmeos, Victo Ngai, BLU, Oliver Jeffers, Tim Burton, Benjamin Lacombe, André Neves, Shout, Yuko Shimizu, Audrey Kawasaki, Irana Douer, Byron Eggenschwiler, Herbert Baglione, Brecht Evens, JR, escif, Remed, Caitlin Hackett, Kozyndan, Lindsay Carr, etc, etc.
“Our lives are full of love and death” ©Pedro Lucena
Parte das suas ilustrações vem acompanhada de um pequeno poema no Flickr (e há referências também a histórias infantis, como “Chapeuzinho Vermelho”). Como é essa relação com a literatura?
Essa relação é muito forte! Eu lembro de meu primeiro livro, “O pescador e sua esposa” dos Irmãos Grimm, uma edição ilustrada que eu tinha. Porque eu era fascinado pelos desenhos do Doré em “O Inferno”, isso me fazia ler trechos desse livro para saber do que se tratavam aquelas ilustrações, e isso eu tinha uns sete anos e meio. Gostar de ler me possibilitou trazer mais referências para meus trabalhos, buscar elementos de outras culturas e integrá-las com coisas da minha própria cultura, criar esse mix de linguagens. Não acredito em um ilustrador que não goste de ler, pois estamos sempre estudando, lendo, e lendo imagens também. A literatura permeia meu trabalho.
Eu ilustro livros e para isso tenho que ler as histórias, contextualizar com o tempo do enredo, período histórico, e tantos outros aspectos que o autor apresenta. O ilustrador acaba virando co-autor. Gosto muito do universo dos contos de fadas, por isso remeto algumas ilustrações às atmosferas dessas histórias. Pela história da “Chapeuzinho Vermelho” eu tenho fixação. Há muito desejo envolvido, o medo e a atração do desconhecido, o aflorar da sexualidade. Para mim é uma das histórias mais incríveis para ser desconstruída. E é isso que eu proponho quando trabalho com contos de fadas, desconstruí-los e mostrar uma outra versão, subversiva claro, que é mais legal.
Ilustração desenvolvida para a revista israelense “A5” ©Pedro Lucena
Os animais também são uma constante em seu trabalho; qual a sua ligação com eles? Eles representam algo em particular para você ou a recorrência é apenas coincidência?
Nada é por acaso. Quando recorro aos animais para construir minhas imagens eles vão desempenhar uma função dentro da imagem, há símbolos associados com tudo e obviamente com os animais. Eu recorro muito ao pássaro, que é um animal muito próximo de muitas pessoas, o pássaro é vida, é liberdade. Trabalhar com um símbolo tão significativo é muito instigante.
Um trabalho que gostei muito de fazer foram as ilustrações para a capa e o encarte do novo CD da cantora Cris Braun. O nome do álbum é “Fábula” e foi nas fábulas e contos de fadas que eu fui buscar inspiração. Há muito antropomorfismo nas fábulas e contos, e assim criei figuras de animais que pareciam sair de livros de contos de fadas. Criei ilustrações lindas, que deixaram minha amiga Cris apaixonada. E eu feliz da vida.
“The Bird Whisperer” ©Pedro Lucena
As referências regionais te influenciam? O que você utiliza da cultura nordestina no seu trabalho?
Acredito que grande parte dos artistas fala melhor das coisas que eles conhecem. Amo minha cultura, amo o Nordeste, e em especial o sertão. Toda a carga de misticismo, lutas, crenças, paganismo, maneirismos, e outros elementos da cultura do Nordeste me influenciam. Acredito na busca pela sua ancestralidade, no poder da história. Eu me emociono com os versos dos repentistas, a fé desmedida da gente daqui, as imagens que o Nordeste e seu povo criam. Quando falo através de minhas imagens sai muito de Nordeste do Brasil, mas ele vai estar lá junto de outros mundos.
“Usina – colheita de cana” ©Pedro Lucena
“Ciscos”, minha nova exposição, é uma resposta imagética para um diálogo entre os poemas de Manoel de Barros e a arte da Ilha do Ferro. A Ilha é um povoado pequeno do município de Pão de Açúcar, aqui em Alagoas, às margens do Rio São Francisco. Lá moram artesãos e tecelãs incríveis, gente simples que consegue tirar do fio e da madeira peças de uma beleza poética extraordinária. Foi no trabalho dos escultores de madeira da Ilha do Ferro que fui beber minha inspiração. Suas figuras medievais, místicas e enigmáticas me chamaram a atenção, assim como também seus pássaros e serpentes. E fui lá para ver de perto para poder criar meus personagens inspirados nas esculturas da Ilha e embalados pela poesia de Manoel de Barros.
Você hoje vive de ilustração? Você acredita que há incentivo o bastante para a arte e cultura no Nordeste?
Há uma constância de trabalho, e eu tenho trabalhado muito para que essa constância se solidifique e que haja uma sustentabilidade do meu trabalho artístico, mas ainda não vivo exclusivamente da ilustração. Há muito pouco incentivo em arte e cultura no Nordeste. Eu moro em um estado com alguns dos piores índices nacionais e talvez mundiais, mas acredito que a arte pode mudar muito disso tudo. Acredito na força que a arte tem de impactar, e quando digo isso, refiro-me impactar para o bem, fazer com que as coisas vão adiante, saiam do lugar, modifiquem-se. E quando falo em arte eu quero dizer além de exposições, espetáculos de dança, teatro, teatro de rua, danças folclóricas, festivais de música, cinema, bienais de livros, de artes, todas as formas de arte.
Eu acreditei que apesar de estar dentro desse cenário caótico que é Alagoas, eu poderia me destacar, e quem sabe poderia chamar a atenção fora dali também, e foi o que acabou acontecendo. Comecei nos idos de 1999 desenhando para amigos que trabalhavam com teatro, desenhei figurino, cartazes e ilustrações para programas e projetos das peças. Parei de ilustrar em 2004 e só retomei dois anos depois, quando voltei para Maceió maravilhado com o que tinha visto durante os dois meses que fiquei em Tefé, no Amazonas, na belíssima Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Eu me encantei, costumo dizer que voltei querendo desenhar tudo o que via pela frente. Aquela natureza extrema teve um impacto em mim e já voltei decidido a desenhar e mostrar meus desenhos para as pessoas e divulgá-los na internet também. Por que não?
Ilustração que integra a mostra “Ciscos”, que inaugura em novembro em Maceió e já passou por Portugal ©Pedro Lucena
Desenhei muito depois dessa decisão e comecei a mostrar meus trabalhos em fotoblogs na internet, e logo apareceram os convites para publicações aqui e fora, como na revista online australiana pagesdigital de que eu era fã. Mais convites foram surgindo, eu expus solo em 2008, voltei a expor em coletivas em 2009 e 2010, desenhei livros infantis, ilustrações para capas de livros, capas de discos, desenhos para sites, sacolas, camisetas, etc. E não quero parar tão cedo. E o mais legal é que fiz tudo isso em um lugar como Maceió, onde o mais crítico é não ter um centro para discussões de arte, não há o curso de Artes Visuais aqui. Mesmo assim não desanimei e segui com o propósito. Tem valido a pena!
Qual a importância da internet para a divulgação do seu trabalho?
Muito grande. Foi pela internet que eu fiz a coisa começar a acontecer de verdade. Meu primeiro convite para uma publicação foi pela net, nessa publicação tinha um grafiteiro que eu já admirava: o baiano Izolag. E lembro que eu achava o máximo poder estar em um mesmo lance que aquele cara que eu gostava tanto, e foi aí que eu vi que a net poderia também me aproximar dessas pessoas que eu admirava. O meu trabalho começou a tomar a internet, pois fui me valendo das plataformas, hoje tenho portfólios no Cargo Collective, Flickr e também no Facebook. A internet ajudou muito os artistas que não estão nas grandes cidades, ou como se diz muito, “fora do eixo”.
Ilustração desenvolvida para os poemas de Tainan Costa Canário ©Pedro Lucena
Quais seus próximos projetos?
Agora mesmo estou ilustrando poemas de Tainan Costa Canário, um querido amigo que vai ter seu livro publicado até o fim do ano, em Maceió. Tenho uma história minha para publicar também. Uma mini graphic novel sobre o medo e como ele anda perturbando as pessoas. Em novembro eu mostro minha exposição, que chamei de “Ciscos”, um trabalho onde uso poesia e escultura como referências para criar as obras que compõem a exposição, ela vai acontecer em Maceió, na Pinacoteca da Universidade Federal de Alagoas.
E quem sabe ela não viaja depois?! Logo mais, “Ciscos” vai ter seus personagens desfilando pelas ruas. É que eu e alguns amigos pensamos em transpor os personagens de “Ciscos” para o teatro, corremos atrás do Prêmio BNB de Cultura para começar o processo e conseguimos. Precisamos inscrevê-lo em mais prêmios e incentivos para poder fazer o projeto se realizar, mas estamos muito empolgados! Então, em breve teremos as corcundas desfilando pelas ruas, tridimensionalizadas. E ainda esse ano eu vou mergulhar em um projeto que envolve o artesanato riquíssimo de minha terra. E na cachola muitas ideias fervilhando prontas para pular fora!
“Keep on searching” ©Pedro Lucena
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