Por Luisa Graça
Recostado sobre um banco num canto do camarim no Pavilhão das Culturas Brasileiras, Anderson Figueredo, 34 anos, belisca um pacote de pipoca apimentada. “Estou comendo de nervoso”, ele diz, com um sorriso largo no rosto. É sua primeira vez no SPFW e, de quebra, vai desfilar e exibir seu trabalho no cenário e na passarela como parte da coleção do projeto Ponto Firme, exibida neste sábado no SPFW N45. Quase três anos atrás ele mal podia imaginar tais circunstâncias, mas foi “transformado pelo crochê” quando, em 2015, passou a integrar a iniciativa idealizada por Gustavo Silvestre que oferece curso de crochê aos detentos da penitenciária masculina Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos.
No princípio estava relutante. “Eu achava que crochê era coisa de mulher, tinha preconceito mesmo. Me obrigaram a participar e acabou que foi um recomeço. Um modo de reconquistar tudo o que eu estava perdendo. A mensagem que eu quero transmitir hoje é: humanidade”, conta Anderson, em liberdade há mais de um ano. A esposa, sentada na primeira fila ao lado dos dois filhos e da sogra, se emociona. “Esse trabalho mudou o jeito que ele pensa, abriu a cabeça dele mesmo. E se tornou uma nova fonte de renda também”, diz Fernanda.
Ele foi o responsável pelas redes e aplicações em crochê nos sapatos (oferecidos pela Melissa) da coleção composta por 45 looks inspirados em temas que permeiam o cotidiano dos detentos. Despontando de uma espécie de cela coberta por uma rede colorida de crochê, o primeiro modelo surge vestindo calça e blusa nos tons e silhueta dos uniformes que os participantes do projeto vestem na penitenciária; no último look, uma explosão de tons de azul e amarelo em forma de vestido com franjas, com movimento e luz – o sonho da liberdade.
“Eu tive muito cuidado para não interferir no processo criativo deles”, explica Gustavo Silvestre, que convidou a estilista Karlla Girotto para dar um workshop sobre criação para os seus alunos. “É uma coleção sobre a vida e os desejos deles. As estampas de futebol, a figura da musa – de vestido e salto alto, as camisetas cartazes com as mensagens escritas e bordadas por eles, os cobertores que viraram jaqueta… E há também as peças mais lúdicas e coloridas, como as que se arrastam pelo chão e os amigurumis que eles fazem tão bem, que apontam para a liberdade que eles almejam”.
“Se você prestar atenção, há recados deles em tudo. As coisas que eles gostariam de vestir, o que eles gostam de fazer, todas essas informações estão nas roupas”, comenta Tasha Okereke, que integrou o casting do desfile junto com a irmã gêmea Tracie, ambas MCs auto-intituladas #itfavela. “Nossos pais são ex-detentos também e a gente reconhece a referência afetiva em tudo isso”.
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Na sala de desfile, um público comovido pela história dos detentos desfilada bem ali na frente, com tanta delicadeza e arrojo em peças tão desejáveis. As jaquetas bomber com aplicações e detalhes nos punhos, os bonés e gorros bootleg Adidas, Quicksilver, Oakley e afins, as delicadas mochilas de amigurumi, as calças com listras em crochê nas laterais, uma notável bolsa Racionais MCs. “É muito importante que exista esse tipo de projeto pra gente começar a questionar quem são essas pessoas e o que elas podem fazer se houver quem as olhe e as tire da invisibilidade. E é isso que elas fazem: essa coisa mais linda”, pondera Amanda Schon, responsável pela beleza do desfile. “A gente quer todas as peças!”.
Por serem fruto de um projeto com fins educacionais (registrado na Secretaria de Educação do Estado), nenhuma das peças pode ser comercializada por enquanto. Mas o plano de Gustavo é desenvolver uma cooperativa até o final de 2018 para tornar possível a venda e distribuição das criações dos rapazes, bem como dar a eles suporte e oportunidade de profissionalização uma vez que deixarem a penitenciária. “O objetivo é, desde o início, que essa habilidade se torne uma ferramenta de renda para eles. Mesmo na penitenciária, as peças que eles fazem fora da aula já servem como moeda de troca entre eles lá dentro.”
Lilian Pacce arremata: “É uma poesia mesmo essa coisa de transformar uma pena em obra. É um trabalho lindo! Agora só falta colocar pra vender”.
+ Leia aqui entrevista com Gustavo Silvestre sobre o projeto Ponto Firme