Lançado na última semana, o novo documentário da Netflix White Hot: The Rise & Fall of Abercrombie and Fitch (Abercrombie & Fitch: Ascensão e Queda) tem chamado atenção na plataforma de streaming. O documentário conta a história de uma das marcas mais influentes culturalmente dos anos 2000, a Abercrombie & Fitch, também detentoras de marcas como a Hollister.
Abercrombie & Fitch: Ascensão e Queda conta sobre o crescimento vertiginoso da empresa desde que Mike Jeffries assumiu como CEO em 1993, se tornando uma das marcas mais famosas e desejadas pelos jovens que cresceram nos anos 2000, criada sobre o preceito da exclusão socialaté a sua derrocada, a partir de 2003.
Acima de tudo, o documentário nos oferece uma visão sobre como o perfil do consumidor mudou nas últimas décadas e o papel que as mídias sociais tiveram para que esse mesmo consumidor tenha voz para se expressar. Isto é, além de dar um olhar sobre os bastidores tóxicos e problemáticos da elevação da marca em uma verdadeira aula de marketing de moda – e do que não fazer hoje em dia.
A ASCENSÃO da abercrombie & fitch
Apesar de ter se tornado conhecido em meados dos anos 90, com Mike Jeffries, a Abercrombie é uma marca de herança norte-americana, criada em 1892. A marca se encontrava “adormecida” nos anos 90 e Jeffries foi contratado para revitalizar a A&F, onde começa sua elevação a marca desejo.
Jeffries consegue resgatar a herança elitista e quase ruralista da Abercrombie e atualizá-la para o novo público, mais jovem, em uma perfeita junção entre o “sexo da Calvin Klein, com o Preppy de marcas como Ralph Lauren e Tommy Hilfiger”, como é descrito no documentário. Ao mesmo tempo, a Abercrombie & Fitch era mais acessível que marcas como Ralph Lauren e Tommy Hilfiger, e portanto, conseguia oferecer uma sensação de elite à jovens e pessoas que não eram, de fato, abastados.
Grande parte do modelo de negócios da marca foi construído sobre pilares do aspiracional, do querer fazer parte. Nas lojas, eram contratadas apenas pessoas bonitas, que cumpriam um padrão de beleza à risca. A presença de homens sem camisa, com abdômes trincados vestindo apenas jeans da Abercrombie & Fitch eram marcas registradas das estratégia de venda nas lojas que se tornaram pontos turísticos, atraindo consumidores que tiravam fotos ao visitar a lojas e flagships.
Ao mesmo tempo, a A&F apresentava um aspiracional mais atingível, ao oferecer preços mais baixos que outras grifes e trabalhar com modelos e vendedores extremamente bonitos, mas que não eram celebridades ou famosos em suas campanhas, mas sim, pessoas normais.
A marca não vendia roupas – que eram em sua maioria t-shirts e hoodies apenas com o logo estampado ou bordado – mas um lifestyle do qual os jovens queriam fazer parte. Um lifestyle essencialmente americano, elitizado e acima de tudo, bonito. As campanhas da marca, fotografadas por Bruce Weber, em sua maioria eram compostas por jovens se divertindo, sorrindo e sendo visualmente agradáveis e raramente possuíam roupas.
OS TÓXICOS BASTIDORES
É aí que o grande problema é apresentado. No final dos anos 90 e início dos anos 2000, é bem óbvio o que o “bonito” da Abercrombie & Fitch representava. Era um ideal caucasiano, magro, sarado, essencialmente americanizado e elitista. Assim, a ascensão da marca foi pautada não na exclusividade, mas sim na exclusão.
Ao criar um nicho de jovens tão dentro do padrão de beleza e tão “desejados”, todos que não faziam parte daquilo queriam, de alguma forma, consumir da marca e se sentir um pouco mais dentro dos padrões de beleza da sociedade.
A marca era obcecada pela beleza e, essencialmente, pela beleza masculina, algo que atraía tanto aos homens quanto às mulheres. Apesar de ser uma marca muito cultuada entre os homens heterossexuais, o documentário mostra que a maior parte daquilo era criada por homens gays, tanto Mike Jeffries, quanto boa parte do departamento de marketing, quanto nomes como Bruce Weber, fotógrafo responsável por fotografar diversas das campanhas da marca, que enfrentou diversas denúncias de assédio posteriormente, negando todas.
A Abercrombie & Fitch era tão obcecada com a beleza e com a figura masculina e fraternidades que, ironicamente, isso se traduzia em uma heterossexualidade tóxica.
A QUEDA
O início da derrocada da Abercrombie começa no início dos anos 2000. Dentre as camisas gráficas criadas pela marca, começam a chamar a atenção dizeres e piadas racistas, principalmente com grupos asiáticos e latinos.
Uma das mais infames representava uma lavanderia, criada por asiáticos, com os dizeres “Two Wongs Can Make It White”, ou seja, dois Wongs (referenciando sobrenomes chineses) conseguem fazem um branco. Essas camisas evocaram protestos nas ruas e nas portas das lojas da Abercrombie & Fitch e fizeram com que as camisetas fossem tiradas de circulação e queimadas. A reputação da Abercrombie já começava a ficar manchada.
No documentário, também é contado sobre um processo de discriminação racial contra a marca. Segundo empregados e ex-empregados, os contratados latinos, negros ou asiáticos eram segregados às áreas traseiras das lojas, como estoques e trabalho de limpeza, enquanto os empregados que atendiam ao padrão de beleza Abercrombie, ficavam à vista, na frente das lojas e como vendedores.
O processo foi resolvido com um acordo entre ambas partes, mas nada mudou. A empresa simplesmente criou uma separação entre “modelos” e “colaboradores”, já que com o nome de modelos, era ainda assim possível continuar contratando baseado em padrões de beleza.
Foi apenas em 2013, quando uma entrevista com Mike Jeffries realizada anos antes, viralizou – aos moldes da época – falando abertamente que só contratavam pessoas bonitas e que a marca era baseada na exclusão, que a fama da Abercrombie & Fitch foi realmente manchada. As pessoas se manifestaram e protestos eclodiram, algo que é muito associado ao poder das pessoas de se manifestarem nas redes sociais, algo que não existia ainda no início dos anos 2000.
O documentário também conta o caso de Samantha Elauf, muçulmana que foi rejeitada dos processos seletivos da Abercrombie & Fitch por usar um hijab na entrevista, algo que iria contra os códigos de vestimenta da marca. O caso foi à Suprema Corte dos EUA, e Samantha Elauf ganhou o processo, em 2015.
O documentário é um prato cheio para quem gosta de entender mais sobre a comunicação e marketing de moda, além das mudanças comportamentais do consumidor ao longo dos anos. O mesmo consumidor que buscava fazer parte de um ideal de beleza inatingível nos anos 2000, começou a buscar marcas com as quais se identificava e se via representado. É impossível não associar a queda da Abercrombie à essa mudança comportamental dos últimos anos.
A Abercrombie & Fitch falhou ao se adequar aos novos comportamentos do consumidor, além de ter diversos escândalos de racismo e exclusão vazados. Se a história parece um pouco similar à da Victoria’s Secret, não é por acaso. Les Wexner, CEO da L Brands (que detinha a Abercrombie & Fitch), após renunciar ao cargo, designou toda sua fortuna para Jeffrey Epstein, criminoso sexual convicto e o deixou trabalhar como olheiro da Victoria’s Secret, onde Epstein teve contato com grande parte de suas vítimas de assédio e comportamento inapropriado.
Além de escândalos sexuais, excludentes e de racismo e transfobia, a marca de lingerie também se baseava em um universo fantástico e aspiracional, não representativo, que com o tempo deixou de gerar identificação e de desejo com o público.
Hoje, ambas Abercrombie & Fitch e Victoria’s Secret buscam reeguer seu império, com uma diretoria repaginada e uma imagem de identificação e inclusão, mas a maioria dos consumidores parecem achar seus passados sombrios demais para uma segunda chance.
O documentário (trailer abaixo) já está disponível na plataforma de streaming.