Após três anos de negociação, Hedi Slimane, diretor criativo da maison Yves Saint Laurent, deu uma longa entrevista a Dirk Standen, ex-editor do Style.com e agora no Yahoo Style. O texto é uma oportunidade rara de ouvir o homem em si, tímido e avesso a entrevistas, que tem sido tão criticado desde que assumiu a histórica marca francesa. Por e-mail, ele fala sobre seus planos para a YSL, que ele chama de “projeto de reforma”, sobre se sentir um outsider e a influência da música em sua vida, entre outros assuntos. E de repente tudo faz sentido e conseguimos ver com clareza como cada passo que ele dá é planejado de forma consistente e sincera à sua visão de vida.
A entrevista tem 28 páginas quando colocada em Word, então separamos e traduzimos alguns highlights, mas você pode ler na íntegra (em inglês) aqui.
Em tempo: a Saint Laurent abre sua primeira loja no Brasil em 15 de setembro, no shopping Iguatemi, em São Paulo.
Sobre o projeto de reforma
“Sempre começo meus projetos de design com uma sinopse, uma perspectiva sobre os fundamentos da Casa, junto com minhas intenções do que devo fazer.
Concebi um projeto pra Dior em 2000, o “First Reform” e chamei-o de Dior Homme. Encontrei esse nome para substituir “Christian Dior Monsieur”, que soava um pouco antigo, e construí uma estética em torno disso por sete anos.
O projeto de reforma na Saint Laurent foi feito e escrito principalmente para o meu time entender o que eu imaginava para a marca. Yves Saint Laurent precisava, na época, de uma reforma enorme para crescer sobre fundações firmes.
Milhões de detalhes de produção tiveram que ser revistos e corrigidos para que a gente conseguisse o nível certo de qualidade e branding e passar a ideia perfeita do que a maison produziria sob o nome Saint Laurent.
Na minha primeira semana na Saint Laurent, eu também desenhei um conceito totalmente diferente para as lojas. E finalmente, minha fotografia foi uma parte significativa para a nova representação da marca, pois eu comecei a trabalhar nessa ideia de campanhas com múltiplas narrativas, com uma abordagem de documentário e de editorial de moda ao lado das campanhas institucionais.
O projeto de reforma é então sobre unidade e consistência sobre todas as mudanças que foram necessárias para acomodar a evolução e o rigor da maison Yves Saint Laurent.
Sobre a mudança do nome
Acredito que o restabelecimento do nome Saint Laurent foi a coisa certa a fazer, apesar das reações absurdas em torno do meu primeiro ano na marca. Ironicamente, foi uma benção disfarçada, pois nos deu toda a publicidade que era preciso para o meu projeto. Naturalmente eu não podia imaginar que voltar às raízes mais históricas e respeitadas de Yves criaria tanta polêmica.
Alinhamento geral
Cada pequeno detalhe é importante. Tem que ter consistência, é uma equação estética que necessita de evolução constante. Há bastante pressão em desenhar todos esses elementos, mas se a casa quer manter uma voz distinta, não há outra coisa a fazer. Tudo, do design a comunicação, deve estar perfeitamente alinhado. Então implementei as mudanças todas ao mesmo tempo, a partir do primeiro dia. As coleções e os desfiles são apenas a ponta do iceberg.
Sobre reverenciar Yves Saint Laurent
Diretamente ou indiretamente busco referências em seu legado. Mas esse é um mundo diferente e o que importa é a nossa época agora, a geração atual. Posso fazer isso através de ideias e meios diferentes, mas Yves está sempre na minha mente, é um ponto de referência constante.
Yves inventou a ideia de brincar com elementos de décadas passadas em suas coleções, mas no final, era sempre sobre seu próprio tempo, a atitude do momento, a polaroide de uma geração. Yves sempre quis que ser prêt-à-porter fosse usável e descontraído.
Yves era muito tímido e eu era muito mais jovem quando trabalhei com ele e me impressionava com sua elegância, sua aura e bondade. Como também sou fotógrafo, tenho guardado em minha mente os retratos dele que não fiz, presos pra sempre na minha cabeça.
Também nunca vou me esquecer de Pierre Bergé pedindo para eu tirar fotos no camarim após o último desfile de Alta-Costura de Yves. Eu tenho o arquivo desse desfile histórico, Yves estava comovido, olhando pela última vez para tudo o que havia criado.
Mas a lembrança mais significativa pra mim foi meu primeiro desfile para a Dior Homme, com Yves e Pierre na primeira fila. No dia do desfile, era a única coisa que importava pra mim.
Sobre a relação com Pierre Bergé
É difícil de expressar o quanto eu o amo e admiro. Por ele, eu faria qualquer coisa.
Pierre sempre foi a pessoa que eu procuro, quem me dá coragem e a força que preciso e eu tenho sempre em mente os valores e os princípios que aprendi com ele. É uma figura paterna para mim. Não há ninguém como ele e nunca haverá.
Sempre penso nele. Como navegar no meio de uma tempestade e manter a sua rota? Pierre sempre soube como fazer isso e como se manter firme nos seus princípios e nunca comprometer a honestidade de sua mensagem, não importa o que aconteça. Mesmo se no começo você não é compreendido.
Sobre Yves e Pierre
Voltei para a moda somente por causa de Pierre e Yves. Devo tudo a eles. Por isso tentei o meu melhor nesses quatro anos para proteger e consolidar os fundamentos da marca que fundaram, não importa o que isso significaria para mim. De alguma forma, era uma questão de honra, dever e amor incondicional.
A coisa mais linda sobre Pierre e Yves, é claro, é a ideia de que sua marca nasceu de um amor. É a origem da dinâmica bem sucedida entre a mente criativa e a mente do business. Pierre totalmente inventou essa ideia. Era sobre amor e lealdade total, um protegendo o outro. Nada que você possa ensinar em uma faculdade de administração.
Sobre viver na Califórnia
Eu encontrei um equilíbrio na minha vida morando na Califórnia, uma certa serenidade e alegria. Estava em um lugar tranquilo e esse novo projeto significava que eu teria que me expor muito mais do que normalmente gostaria. Eu estava muito feliz em voltar a um estúdio de moda, ainda mais para uma marca que era família pra mim.
Los Angeles foi um observatório perfeito da cultura pop e de sub-culturas inspiradoras. Sem falar na comunidade de internet, que transformou a Califórnia.
Sobre o impacto do casting no primeiro desfile
O casting veio direto das minhas fotos, meninas andróginas e descoloridas, garotas que eu conheço, melancólicas, com o cabelo despenteado e quase nada de maquiagem. Eles estavam lá como indivíduos e não em um concurso de beleza. É o tipo de beleza intrigante que eu entendo. Provavelmente, na época, não era a ideia que o público tinha para uma marca de luxo. Esse casting foi uma mudança radical.
Sobre as reações negativas
Eu totalmente entendo as reações. Havia um contexto bem particular, como se alguém tivesse desligado a música em uma festa de aniversário. Mas eu sabia que meu projeto seria delicado.
Mas o tom já estava definido, não importa o que eu tivesse feito na primeira coleção. Eu queria simplesmente focar no futuro da marca com dedicação e determinação e persistir no projeto que concebi.
Algumas das reações provavelmente foram respostas ao fato de eu parecer distante ou inacessível e eu entendo completamente. Porém, eu não fingiria ser quem não sou. Isso é sobre ser sincero. Ficar distante e em um ambiente mais quieto é algo mais próximo da minha natureza.
A crítica fez minha determinação ainda mais forte. Se não há reação, significa que ninguém liga. Se ninguém liga, então temos um prolema.
Além disso, críticas e polêmicas, de alguma forma, me permitiram simplesmente ir direto ao ponto. Se você tem muito contra você, então não tem nada a perder e assim conquista sua liberdade. Não há mais inseguranças e necessidade de agradar. E obviamente, nunca foi sobre a percepção que as pessoas poderiam ter sobre mim. Era sobre Yves e Pierre, sobre a marca e somente a marca, dar à maison Yves Saint Laurent uma perspectiva, uma estratégia e uma progressão. Essa é a promessa que fiz e eu tive que manter minha palavra.
A indústria hoje
Diretores criativos na indústria de moda atual têm um pé no ateliê, outro na loja e os dois olhos na bolsa de valores. O clichê de controlador talvez seja conveniente, mas é ilusório. Não é sobre controle, mas sobre consistência e simplesmente não há outro jeito de fazer dentro de uma marca global. Não há escolha. Criação, estratégia e gestão são conectados e há muito em jogo, incluindo a imagem de uma instituição, milhares de funcionários e a responsabilidade em relação aos acionistas.
A chatice do mundo contemporâneo
A explosão da cena de arte contemporânea, o frenezi dos colecionadores, tudo começou a parecer tão genérico. Perdi interesse em tudo que era “contemporâneo” em 2007. Senti que havia uma necessidade de andar pra frente, para algo pós-contemporâneo. Tudo à nossa volta parecia que estava saindo de um refrigerador.
Eu ainda quero uma casa contemporânea? Um sofá de design com tecido tecnológico, uma pintura de uma galeria de arte gigante comprada em uma feira? Esse mundo muito lustroso se tornou uma linguagem acomodada, sem riscos, uma mercadoria convencional. Eu prefiro explorar um mundo analógico, uma estética alternativa mais calorosa, ligeiramente errada ou caótica às vezes. Qualquer coisa que não seja o mundo sem vida de uma tela plana digital.
Sobre sua paixão pela fotografia
Fui um garoto solitário e tenho isso até hoje. Então, sempre observei tudo de onde devia estar: do lado de fora. Possivelmente foi como a fotografia me atraiu. Havia sempre as lentes e a câmera no meio, eu não tinha que me expor. Me sentia protegido e assim é como eu tenho me comunicado desde então, já que não sou de falar muito. A fotografia tem uma linguagem própria e eu podia expressar sentimentos e emoções através dela.
Sobre sua mãe
Minha mãe teve uma influência significativa sobre mim. Ela trabalhava como costureira, seu tio era alfaiate e sua tia a ensinou a costurar. Ela era muito talentosa e me levava junto quando ia comprar tecido. Mas nunca liguei muito pra isso até fazer 16 anos e ter vontade de criar minhas próprias roupas.
Quando comecei esse projeto na Saint Laurent, minha mãe, que tem 82 anos, ficou muito feliz de ver que essa tradição da minha família estava se perpetuando. Infelizmente ela não pode mais fazer roupas e acho que ela se sentiu feliz que, de alguma forma, eu estava fazendo por ela.
Sobre a influência da música
Desde criança, música sempre foi tudo pra mim. Assim como zilhões de crianças e adolescentes, era um refúgio e esse ainda é o caso hoje. Sempre terá uma influência em tudo o que faço, a começar pela fotografia.
Sobre bullying e se sentir inadequado
Sempre há algo que você faz que se refere à sua infância ou juventude. Eu era precisamente como qualquer um desses caras que fotografo ou que desfilam nos meus shows. As jaquetas ficavam sempre grandes em mim. Muita gente na escola ou na minha família fazia eu me sentir como se fosse um homem pela metade porque eu era mais esguio e não tinha um corpo atlético. Eles fizeram bullying por um tempo, insinuando que ser magro era “queer”, para que eu me sentisse mal comigo mesmo. Certamente havia algo homofóbico ali.
Então eu me virava para meus heróis da música e achava conforto neles. Eu queria ser como eles em vez de me esconder em roupas largas para evitar comentários negativos. David Bowie, Keith Richards, Mick Jagger, Mick Jones, Paul Weller, me sentia conectado por sua estética e seu estilo.
Há essa ideia de androginia, que é associada à minha silhueta e ao meu design desde o final dos anos 90 e acho que é um reflexo de como eu era, essa falta de definição de gêneros. Na época eu sentia uma conexão com o personagem “The Thin White Duke”, do Bowie. Essa é bem a origem de tudo o que fiz após isso, um menino ou uma menina com a mesma silhueta.
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