Da nova geração de marcas que surgiram nos últimos dois anos, fique de olho na Dendezeiro. Lançada em 2019 pelos amigos Hisan Silva e Pedro Batalha, essa marca de Salvador tem muito a contar através de suas coleções. Com pouco tempo de vida, a Dendezeiro é um reflexo da energia de transformação e amor que circulam em torno de Pedro e Hisan: além das coleções que criam, eles também querem usar seu trabalho e espaços para movimentar a cena criativa do Nordeste.
A marca, que integra o line-up da Casa de Criadores, já vestiu artistas como Maria Gadu e Majur e agora está preparando o filme de lançamento de sua próxima coleção marcado para novembro. Hisan e Pedro também passam a fazer parte do time FFW, com conteúdos especiais que vão mostrar, através de matérias, ensaios e outros projetos, uma cena criativa pulsante que existe na Bahia e em outras regiões do Nordeste.
Com 22 e 23 anos respectivamente, Hisan e Pedro têm muito tempo pela frente e muitas histórias para contar. Abaixo, leia os principais trechos da nossa conversa.
Como vocês se conheceram?
Hisan: Foi há uns sete anos numa roda de conversa de desabafo social. Pedro tava palestrando e acabamos virando amigos.
Como evoluíram disso para criar uma marca?
Hisan: Minha família tinha problemas com a minha sexualidade e eu estava no processo de sair de casa. Pedro também estava indo morar sozinho. Decidimos criar um brechó, a gente fazia uma seleção de peças e fazia intervenções nelas. As pessoas adoravam, a gente fazia até ensaio fotográfico com amigos que estavam começando no styling e fotografia. Vendia muito rápido.
Hisan, como foi esse momento com a sua família?
Hisan: Minha família nunca acreditou muito nos meus sonhos. A luta pelos meus sonhos foi muito solitária. Quando meu trabalho começou a ser reconhecido e eu passei a sair em revista e fazer desfiles, minha família passou a gostar do meu trabalho e os laços se reataram. Hoje estamos bem e eles apoiam o nosso trabalho. Minha família real de verdade é Pedro, meus amigos e nossa equipe na Dendezeiro.
E quando vocês lançaram a Dendezeiro?
Hisan: A gente tinha vontade de ir mais além do que simplesmente alterar as roupas do brechó. Criei a modelagem de uma jardineira regulável que surgiu da minha necessidade de ter uma roupa que coubesse no meu corpo. Peguei um tecido escondido da mãe de Pedro e fiz essa peça. As pessoas gostaram, resolvi botar pra vender e deu muito certo.
Pedro: Começamos a produzir nossa própria coleção em janeiro de 2018 e lançamos na festa Batekoo aqui em Salvador como uma marca que se chamava Noostilo. No meio da boate, às 3h da manhã, parou a música e começou nosso desfile.
Hisan: Passamos o ano experimentando e foi nosso primeiro contato com moda costurando as roupas. A gente ainda trabalhava em outras coisas para nos sustentar, mas resolvemos nos dedicar 100% à marca. Em janeiro de 2019 lançamos a Dendezeiro e logo na primeira coleção surgiu a oportunidade para vestir Maria Gadu, Majur e o rapper Iran.
Pedro: Hisan aprendeu a fotografar sozinho pra gente não ter que ter esse custo e eu peguei uma máquina de costura da minha avó e me joguei na modelagem pra gente poder produzir em vez de ter que contratar costureira. Fomos auto didatas e aprendemos o que precisávamos pra fazer a marca.
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“Fomos auto didatas e aprendemos o que precisávamos pra fazer a marca”.
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Como vocês definem a Dendezeiro?
Hisan: Queremos fazer roupas que possam vestir todo mundo e que façam as pessoas se sentirem bem. Roupas reguláveis que falam sobre corpos diversos e mostre nossas inspirações daqui enquanto Nordeste. O que a gente, enquanto nordestino, gosta de vestir?
Vocês tinham pouco mais de um ano de marca quando entraram na Casa de Criadores. Como foi esse processo?
Pedro: No ano passado fizemos uma coleção chamada Cor de Pele em que nos inspiramos em uma pesquisa da Pantone com cinco tonalidades de peles diferentes. Fizemos um desfile em Salvador e fomos parar no Mídia Ninja. O Isaac silva conheceu a gente e acabamos criando uma proximidade com ele e as pessoas do Sul e Sudeste começaram a conhecer mais a gente. Foi o Isaac que nos apresentou lá na Casa de Criadores.
Hisan: O circuito de moda nacional não engloba o Nordeste. Vemos a sandália de couro na Prada, mas não vemos como algo de moda aqui no Brasil. A moda tem essa barreira muito grande.
Quais os planos e desejos que vocês têm para a marca?
Pedro: Quando pensamos na Dendezeiro, a gente visualiza ela como algo maior do que uma marca de roupas, enxergamos como um projeto multicultural. Gostamos muito de trabalhar com audiovisual. A gente entende a importância dos desfiles e abraçamos esse modelo enquanto marca, mas a gente visualiza nosso futuro diferente do que apenas lançando coleções em desfiles.
Que espaço vocês querem ocupar?
Pedro: O espaço onde queremos estar é um de referência de produção audiovisual, de ser uma marca com uma nova ótica de enxergar a moda. Sempre falamos sobre o momento em que vamos conseguir fazer nosso próprio filme e mostrar o quanto a Bahia é criativa, o quanto as pessoas pretas e indígenas têm potencial criativo. E começamos a inserir as pessoas nesse lugar de potência criativa. Nossa relação ancestral com a música e com a dança também é muito forte no nosso trabalho enquanto linguagem.
Hisan: Estamos sentindo uma abertura grande ao nosso trabalho. Dois jovens que estão literalmente dedicando a vida a esse projeto. Queremos inserir as pessoas no mercado pra que, no futuro, elas não passem pelos perrengues que passamos.
Como é a cena de moda em Salvador?
Hisan: Muito diverso, amplo e plural. Temos muita gente incrível e vemos cada vez mais como o Nordeste é múltiplo. Mas todos vivem o mesmo pesadelo: muita criatividade e pouco dinheiro. A moda enquanto criatividade está muito presente, mas o mercado está em deficit em relação a giro monetário.
Pedro: Existe uma crueldade na moda por ela ser centralizada no Sul e Sudeste que é a comparação da qualidade dos produtos de São Paulo em relação ao resto do país. As pessoas aqui se sentem desestimuladas a continuar.
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“Existe uma crueldade na moda por ela ser centralizada no Sul e Sudeste que é a comparação da qualidade dos produtos de SP em relação ao resto do país. As pessoas aqui se sentem desestimuladas a continuar”.
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Isso aconteceu com vocês?
Pedro: Passamos por um processo de auto sabotagem no inicio. Quando víamos as produções de SP, a gente pensava: nossa, isso é muito inalcançável pra gente. Se eu não tenho essa variedade de aviamentos e tecidos, se eu não tenho o mesmo poder aquisitivo dessa pessoa, como eu vou, do nada, produzir igual? Começamos trabalhando com chitão e ouvimos coisas muito negativas no início.
Hisan: Tem outra questão que é a dificuldade de se organizar. As pessoas negras precisam se organizar em relação às finanças. Foi mto difícil, tiramos dinheiro de tudo o que tínhamos e investimos na primeira coleção. Éramos dois jovens negros que não tinham grana e estavam saindo de casa. Como a pessoa se organiza financeiramente pra isso?
Os acessos aqui são bem limitados. Uma das nossas lutas principais, além de permanecer nesses espaços que conquistamos, é de trazer esses espaços pra cá. Precisamos trazer oportunidades para as pessoas. Não quero que a Dendezeiro seja uma a história de dois meninos que passaram por muitas dificuldades e conseguiram. Queremos que a gente consiga crescer o nosso entorno também e não apenas a nossa marca.