Por Vinicius Alencar
Ao buscar nomes de criativos e – especialmente – de stylists de fora do eixo sul-sudeste para uma matéria que fiz aqui para o FFW, me deparei com o perfil de Savio Drew. Após alguns minutos vendo as postagens não apenas no seu perfil pessoal, como em dois dos seus principais projetos, o Obi (que significa azul em tupi-guarani) e o Brazil 1,99, percebi que Savio não é só um talento para se acompanhar, mas que o foco do seu trabalho se comunica perfeitamente com o que a moda brasileira procura hoje: celebrar um Brasil real, que não se limita a termos caricatos e antiquados e nem está preso a regionalismos.
Apesar da entrevista ter sido feita por e-mail, já que Savio atualmente mora na Europa, onde está cursando um mestrado focado em sustentabilidade na EASD [Escola d’Art i Superior de Disseny de València], foi emocionante saber mais da sua trajetória, que reflete todos os ônus e bônus do Brasil. Nascido em 1995, Savio Farias vem de Anhuma “um lugarejo que conta com cerca de 20 pessoas, praticamente minha família”. Ao pesquisar sobre, descobri apenas, com algumas infos genéricas, de que se trata de uma meso-região do centro-norte piauiense.
Nossas conversas por email, que você pode ler abaixo, revelam não só como Savio foi da Valença do Piauí para a Valença espanhola, mas principalmente como seu percurso nos ajuda a continuar acreditando na moda como um agente transformador.
Para começar me conta um pouco de você, da sua infância, o início de tudo…
Bom sou nascido e criado no Piauí, para ser mais preciso em um lugarejo chamado Anhuma com cerca de 20 habitantes atualmente (praticamente minha família), fui criado nessa região até por volta dos meus 12 anos e apesar de jovem carrego comigo memórias de um tempo que parece antigo para muitos da minha idade, como, por exemplo, ter nascido em lugar sem energia elétrica ou água encanada.
Vivíamos em um sistema que chamo de “sistema feudal brasileiro” porque na época não tínhamos casa, nem terras, morávamos na terra de senhores com terras em troca do teto, sem salários e benefícios trabalhistas. Basicamente tiramos tudo que precisávamos da natureza, desde o algodão para fazer os fios para acender as velas, para ajudar na escuridão da noite, até nosso próprio azeite de coco babaçu.
Tendo em vista que a única escola do lugarejo era muito longe de nossa casa, faltava cadeiras, todas as séries eram na mesma sala para uma única professora, minha mãe decidiu se mudar para a cidade mais próxima, Bertolínia afim de dar melhores oportunidades para nós e aí as coisas começaram a mudar porque eu sempre gostei de estudar e na cidade as oportunidades eram melhores.
Depois de um tempo minha mãe que é empregada doméstica teve duas patroas que eram de fora da cidade que se tornaram muito amigas da família, ao conhecê-las tive mais certeza que queria alcançar novas oportunidades através do conhecimento. Pedi uma tia que mora em Brasília para eu morar na casa dela para poder estudar e consegui o sim dela, me mudei com 16 anos em busca do tal ‘mundo novo’. Consegui vaga em uma escola pública e terminei meus estudos ali, como sempre tive uma boa relação com meus professores me tornei amigo da professora de artes [a Nete], que me apresentou ‘o mundo’: me levou a museus, cinema, minha primeira viagem a São Paulo. Como sempre desenhei desde pequeno ela me incentivava muito sobre a ideia de fazer moda ou algo relacionado com isso, então foquei nessa ideia, prestei vestibular e consegui financiamento total pelo FIES para fazer moda em uma faculdade particular.
Como ou quando você começou a se interessar pela moda?
Sempre desenhei desde a infância e com o passar do tempo, de maneira autodidata, fui praticando mais e mais, desenhar roupas era o que eu mais gostava, talvez pelo fato de roupa ser algo bastante simbólico pra mim, lembro de quando eu morava em Anhuma, eu e meu irmão dividíamos as mesmas roupas (muito poucas) e isso [desenhar] era algo que me fazia desejar muito ter as minhas próprias roupas e poder escolher o que eu ia vestir e quando vestir. Desenhar era libertador pra mim.
Quais foram seus primeiros trabalhos antes de ter sua marca própria?
Ela surgiu paralela a outros trabalhos, a marca nasceu do meu TCC de moda [Savio é formado em Design de Moda pelo IESB]. Trabalhei como produtor de moda no Correio Braziliense, enquanto estudava e depois disso sempre trabalhei na Drew, em paralelo a isso fazia outros trabalhos como produtor de moda ou ilustrador freelancer.
Você também trabalhou como professor em Brasília, como foi essa experiência?
Sim! Foi uma das minhas melhores experiências, eu era professor de um programa do governo de Brasília que visava melhorar a vida de jovens e adultos em situação de vulnerabilidade social através da indústria do vestuário. Neste trabalho eu me deparei com todo tipo de situação, porque eu tinha alunas de 15 a 70 anos com os mais diferentes problemas sociais e isso fez com que eu pudesse conhecer ainda mais sobre a base social de quem está às margens do sistema de moda. Conheci mulheres incríveis nesse caminho, provedoras de suas famílias que apesar de muita violência tanto por parte do sistema quanto de seus maridos encontravam forças para continuar firmes. No final eu ensinava a costurar e em troca aprendi muita coisa do mais profundo dos Brasis que se pode ter.
E na EASD, quais suas impressões, o que mais você gosta e o que mais teve dificuldade?
Tenho gostado bastante dessa experiência de estudar fora do contexto que conhecia e aqui encontrei um espaço bastante amigável e fértil para novas ideias. O que mais tenho gostado é da multiculturalidade do curso e da abordagem mais científica e teórica sobre moda sustentável.
As dificuldades que vejo são mais sobre eu ter que me controlar muito, no sentido de que por aqui muita coisa que eu era acostumado a fazer, é feito de um jeito bem diferente de como eu fazia (é mais tranquilo) e eu no Brasil era ‘mil e uma coisas’ ao mesmo tempo, e isso tem me pegado um pouco.
Têm planos de continuar em Valência? Retornar ao Brasil? Você retorna com frequência?
Sobre continuar aqui não tenho muito claro quanto tempo, porque fora a faculdade eu tenho motivos pessoais para estar aqui também, porque meu marido é de Valência e por hora estamos bem aqui. Sim, o Brasil continua sendo a base do meu trabalho e fonte de inspiração, impossível pra mim estar longe disso e continuo realizando trabalhos no Brasil desde que me mudei para Valência e tem dado muito certo até agora.
Seu mestrado é focado em sustentabilidade, correto? Foi desde sempre um tema que te atraiu ou que surgiu mais recentemente?
Sim, o foco é o co-desenho e a sustentabilidade. Cara, eu sempre digo que nasci em um sistema sustentável por ter nascido em uma comunidade que realmente vivia uma economia circular onde tudo que produzíamos fazia parte de um ciclo vivo e comunitário.
E, antes mesmo de sustentabilidade ser a maior pauta de hoje em dia, eu criei a Drew (atualmente Obi) com esse foco lá atrás por sempre pensar no nosso maior bem que é a natureza e por ter vivido na pele o quanto ela é incrível e o quanto é bom viver em harmonia com ela. Também acompanhei a seca de rios e lagos em minha região e, ainda, as transformações na caatinga por conta da não preservação dos bens naturais, culturais e ancestrais do Brasil.
A pergunta anterior foi para introduzir as dúvidas sobre seus demais projetos, pelo que percebi é multidisciplinar, certo? Indo da pesquisa ao documental, passando pela moda, resultando em um produto em si, mas não sempre, certo? Poderia me explicar com suas palavras?
Eu sempre gostei muito de experimentar e apesar de ser formado em moda eu gosto muito de explorar outras áreas como cinema, educação, produto e etc, porque acredito que para criar em um país como um Brasil temos que estudar muito sobre nossa história e sobre como somos formados. Buscando em diferentes formas de criar, eu aprendo mais e mais sobre tudo isso, sair do confortável pode ser bastante produtivo, eu acho.
Gosto também da mistura que dá trabalhar juntando pessoas de diversos conhecimentos para gerar algo com mais verdade e pluralidade. Pensando em moda nunca gostei da ideia dela que está por muitas vezes presa em roupas, amo a ideia de fazer moda sem fazer roupa ou falar de moda através de história e documentos que não necessariamente resultará em uma coleção.
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“É urgente descentralizar a visão criativa neste país”
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Designers, stylists, coletivos, criativos de modo geral… é muito difícil mapear e conhecer novos talentos fora do eixo Sul-Sudeste, mas as redes sociais têm ajudado isso de certa forma, não? Ou isso seria uma falsa impressão?
Sim, eu acho que as redes vêm mudando muito essa realidade triste, a pouco tempo venho trabalhando com pessoas talentosíssimas fora desse eixo e tudo através das redes. Tanto conheci como venho sendo conhecido, e isso me deixa muito feliz, porque é urgente descentralizar a visão criativa neste país.
Teria alguns nomes de criativos que vêm chamando sua atenção?
Ah, sim! Tem a marca de um amigo querido de Fortaleza que tem um trabalho primoroso que é o David Lee. Amo o trabalho da ilustradora Paula de Aguiar, que já tive o prazer de fazer alguns trabalhos. Outra ilustradora que já trabalhei e gosto muito é o da Ariela Martins. Tem também a marca Foz, que coloca muita luz no trabalho dos artistas da Ilha do Ferro. E um coletivo de Brasília chamado Seconds Media.
Sobre a Obi, como a definiria, quais são seus planos para ela, como ela funciona: segue um calendário de lançamentos? Pelo que notei, aparenta ser slow e exalta técnicas manuais?
Atualmente eu falo que a Obi é mais meu laboratório criativo onde eu experimento e pesquiso sobre a moda que eu acredito. Sobre as coleções eu realmente não sigo o calendário, porque como minhas roupas são bem mais artesanais e aproveita muita matéria prima de reuso, não posso fazer como no sistema tradicional de moda. Também prefiro respeitar os ciclos de criação e produção do que eu faço sem atropelos, e em paralelo a isso trabalho com outros produtos não necessariamente físicos.
Busco colocar na Obi ideias e questionamentos que fazem parte do meu universo através de vídeos, fotos e ilustrações. Meus plano é de um dia poder fazer o que eu faço da forma mais circular possível e poder equilibrar a produção de mais peças com uma educação de moda e do vestir mais consciente. Atualmente não consigo produzir tanto porque sou bem pequeno, que por um lado eu escolhi fazer as coisas mais devagar, porém quero num futuro oferecer mais produtos, e sigo me preparando para isso.
Acabamos de lançar aqui na Europa nossa primeira parceria internacional com a marca portuguesa Cuscuz e tem sido divertido trazer para fora um pouco do design e da minha história brasileira para um público diferente e ter trabalhado com Ana Mendes, dona da Cuscuz, nesse projeto foi bastante curioso e leve.
E o Brazil R$1,99? Segue de forma independente, há intersecções com a sua marca própria? Poderia me explicar um pouco mais?
Não. Tudo se entrelaça em algum momento. O Brazil 1,99 é onde eu exploro junto com a Luiza Herdy mais a comunicação e as experimentações audiovisuais, mas tudo seguindo o mesmo objetivo da Obi que é o de apresentar o Brasil que acreditamos e a cultura popular brasileira da melhor forma possível.
O Brazil 1,99 nasceu com o objetivo de fazer panfletagem da cultura do sol explorando a cultura popular brasileira através de um olhar não turístico e mais leve, porém sem mostrar as durezas que se faz presente no cotidiano de muita gente, colocando em evidência o trabalho e a força de quem faz esse Brasil com muita luta e muita, muita autenticidade. Com o objetivo de mostrar um Brasil que sim, é miserável e que faz com que não valorizemos nossa cultura e os verdadeiros heróis nacionais, como as Marias e os Josés que sustentam um pilar muito importante da cultura nacional, a cultura do Brasil impossível.
Agora mesmo estamos criando nosso site onde expandimos nosso olhar e pesquisas sobre a cultura do sol e no site teremos a Kitanda, nossa loja online onde vamos vender produtos em parceria com criativos de todo o Brasil.
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“O mais interessante dessa experiência aqui fora está sendo a oportunidade de mostrar meu Brasil impossível, o Piauí e minha visão do Brasil que está fora da rota turística de exploração.”
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Até mesmo sudestinos e sulistas possuem um olhar estrangeiro sobre o Brasil, mas como pessoas de outros países interpretam seu trabalho? Imagino que tenha muita curiosidade, deslumbre, mas também dúvida, já que deve ser difícil explicar as mil camadas que o Brasil possui, não?
Pra ser bem sincero interpretam muito bem e com muito respeito, mas acho que isso depende muito de como eu conto o que faço. Para mim, nossa história por muito tempo vem sendo contada através desse viés turístico muito quadrado e que pouco explora o tão profundo culturalmente é o Brasil. O mais interessante dessa experiência aqui fora está sendo a oportunidade de mostrar meu Brasil impossível, o Piauí, e minha visão do Brasil que está fora da rota turística de exploração. Está sendo lindo falar de caju, da cultura do rala bucho e da gambiarra para quem só conhecia o Rio e Salvador.
Como um brasileiro que conhece profundamente o país, mas que agregou um olhar global sobre nossa estética: o que ainda te fascina, te impressiona e o que você aprecia sempre descobrir mais ou trabalhar com mais frequência?
O que mais me chama a atenção e que venho agregando ao meu trabalho é a forma com que o Brasil impossível conta história e de como o brasileiro que está fora desse itinerário mais embranquecido brasileiro se comunica e encontra formas muito autênticas de fazer Brasil. Quero cada vez mais poder estudar nossa cultura, desde um ponto de vista mais antropológico até tudo de mais longínquo que se criou dos centros. Sigo aprendendo a ler para ensinar meus camaradas que estão ainda lá no Piauí e que merecem oportunidades assim como todos.
Sei que é uma pergunta um tanto hermética, mas… como você vê o Brasil num futuro próximo, prestes a entrar em um ano decisivo por uma série de motivos…
Eu vejo um Brasil que por um lado estará com uma enorme ferida para ser tratada, mas também gosto de pensar que nesse futuro temos a chance de escolher como vamos tratar essa ferida. Acho que esse será o momento de nos apegarmos a tudo que é verdadeiro e tratar de uma vez essa ferida, com respeito às diversas camadas que formam o Brasil, de forma mais justa e sobretudo estudando sobre o que é, e como é formado esse país.
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Em tempo, Sávio acaba de iniciar uma série de colaborações com a gigante Adoro Farm, que foi revelada em 02.12, enquanto esta matéria estava sendo editada. Um passo dado ao lado de Luiza Herdy, sua parceira no projeto Brazil 1,99 cujo filme Gambiarra você pode ver abaixo. Olho nele (s)!