Manto tupinambá voltou ao Brasil, mas ainda restam outros voltarem para a casa
A reparação histórica ainda é superficial diante das particularidades das culturas originárias
Manto tupinambá voltou ao Brasil, mas ainda restam outros voltarem para a casa
A reparação histórica ainda é superficial diante das particularidades das culturas originárias
No início de julho, a volta do manto tupinambá apareceu nos principais veículos do país, afinal a iconografia é uma entidade sagrada e ancestral para o povo originário homônimo, que estava sob domínio do Museu Nacional da Dinamarca desde 1689. A peça, com 1,20 metro de altura e feita de penas de guarás, papagaios, araras-azuis e amarelas, foi devolvida como doação após extensas negociações – e agora faz parte do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que busca reconstruir sua coleção após o incêndio de 2018.
Apesar da chegada do manto ser muito aguardada, houve polêmicas em torno de sua vinda. Primeiro, ao aterrissar em terras brasileiras, o povo Tupinambá não foi autorizado a realizar uma cerimônia de recepção para a peça. Uma celebração ligada às tradições culturais do povo estava planejada, mas eles só foram informados da chegada do manto depois que ele já estava armazenado no museu.
Em seguida, após protestos do Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (CITO), que alegou desrespeito aos acordos sobre a recepção do manto e falta de consideração com os verdadeiros donos da peça, o diretor do museu emitiu um comunicado dizendo que nem todas as solicitações poderiam ser atendidas devido à fragilidade do material e a questões financeiras. Nas redes sociais, a forma como o diretor do museu anunciou a chegada foi alvo de críticas, que apontavam tecnicismo e insensibilidade diante de uma situação tão delicada.
OUTROS PELO MUNDO
Mesmo em terras brasileiras, a chegada do manto é um breve alívio para um problema muito mais amplo. Atualmente, existem cerca de 11 mantos como este espalhados pelo mundo, sendo que 10 estão na Europa. Alguns museus europeus possuem mais de um artefato indígena em seu acervo. Desde os anos 2000, o povo Tupinambá solicita a repatriação do manto.
De acordo com a BBC, as negociações para a devolução do manto tupinambá ao Brasil foram complexas e demoradas. Glicéria Tupinambá, uma artista, antropóloga e líder indígena, inicialmente recusou o pedido do Museu Nacional para solicitar o manto ao Museu da Dinamarca, pois considera o manto um ancestral, não um objeto. Após consultar os “encantados”, entidades espirituais dos tupinambás, ela recebeu a mensagem de que deveria fazer o pedido, mas o manto retornaria somente se quisesse.
Glicéria então viajou a Copenhague, onde escutou os cinco mantos, e apenas um se manifestou para retornar. A carta foi enviada ao Museu da Dinamarca, que acatou o pedido, e em 2023 foi formado um Grupo de Trabalho para a Restituição de Artefatos Indígenas. Paralelamente, 598 artefatos indígenas foram devolvidos ao Brasil pelo Museu de História Natural de Lille, na França.
ORIGEM E SIGNIFICADO
O manto tupinambá é confeccionado com penas de pássaros costuradas em algodão, selado com cera de abelha para maior durabilidade. O ambiente de criação deve ser pacífico e calmo. “O manto envolve várias pessoas e vários saberes”, disse Glicéria à Folha de S. Paulo. A peça é destinada aos líderes religiosos para uso em rituais sagrados, como a antropofagia, onde os indígenas consumiam a carne do inimigo, conforme destacado pelo G1. O privilégio de usar o manto era concedido aos caciques, majés, pajés e carrascos, que tinham o respeito dentro da comunidade.
REPARAÇÃO HISTÓRICA
O processo de repatriação ainda não recebe o respeito que merece, mesmo com a reparação histórica em pauta, que muitas vezes se limita a discursos. A UNESCO determinou que o país que solicita a devolução de artefatos deve arcar com os custos de transporte, manutenção e recepção das peças, o que pode ser extremamente caro e inviável para algumas nações.
A simples abertura para a devolução de itens adquiridos à força durante o colonialismo não é suficiente para corrigir os erros cometidos por países imperialistas. Muitas vezes, a situação em que as nações saqueadas se encontram reflete as ações exploratórias que destruíram suas culturas.
Além disso, a falta de permissão para que os proprietários históricos realizem a recepção adequada de seus itens, como no caso do povo tupinambá e seu manto, evidencia uma falta de respeito e de compreensão histórica sobre seus rituais e simbolismos ancestrais. Rafael Freitas, autor do livro “Guanabara Tupinambá”, explica que o significado dessas peças vai além da cultura, estando intimamente ligado à religiosidade do povo, pois “o ato de vestir o manto representa uma conexão dos encantados com seus antepassados e a sabedoria ancestral”, uma vez que quem os portava eram os pajés e as lideranças representativas.