Por Luisa Graça
Cultura pop. Quando você mora numa cidade pequena e limitada, é ela a janela principal para avistar novos horizontes. Foi assim com Peter Saville, o designer gráfico mais famoso do Reino Unido (ele recebeu uma medalha oficial por isso e foi tema de uma exposição no Design Museum), que cresceu no norte da Inglaterra apreciando capas de discos – “o único tipo de informação visual avant-garde que eu tinha acesso em meados dos anos 1970”. Curiosamente, foram capas de disco – criadas por Saville, veja só –, que inspiraram um jovem Raf Simons criativamente quando vivia num vilarejo de 6.000 habitantes na Bélgica. Foi o que, em última análise, o impulsionou a tornar-se designer de moda. Não soa como surpresa que Simons tenha feito uma coleção completa para sua label homônima baseada no trabalho de Saville, seu Inverno 2003, e que agora tenha incumbido o designer de criar a nova logomarca da Calvin Klein.
“Discos acabam sendo uma inspiração inicial para muita gente. Seja Raf Simons, Jonathan Ive ou Wolfgang Tillmans e tantos outros. Ainda me desconcerto quando penso nisso”, diz o britânico. “Antes de decidirem se querem ser bailarinos, arquitetos, contadores ou cientistas, a primeira experiência comum compartilhada fora de casa é através da música. No final da minha adolescência foi assim. Não foi através da minha família nem do currículo escolar que meus horizontes se expandiram, foi pela cultura pop”.
Nascido em Manchester em 1955, Saville era obcecado por bandas como Kraftwerk e Roxy Music e pelo trabalho de Herbert Bayer e Jan Tschichold, tipógrafos modernos apresentados a ele pelo amigo Malcolm Garrett (responsável pelas capas dos primeiros álbuns do Buzzcocks). No afterglow do punk, ele encontrou nessa estética mais sentido do que no estilo anárquico da grafia punk. Sua primeira comissão, aliás, foi inspirada em Tschichold – que criou as primeiras fontes sem serifa. Um pôster amarelo evocando o passado industrial e o presente pós-industrial da cidade para anunciar a primeira festa The Factory, no Russel Club em Manchester, em 1978, encomendado pelo jornalista Tony Wilson, a quem conheceu num show da Patti Smith. Quando Wilson decidiu lançar discos das bandas que tocavam na festa, fundou com Saville o selo Factory Records. E o resto, você sabe, é história. Lançaram o Joy Division (que depois se tornaria New Order), Happy Mondays, Orchestral Manoeuvres In The Dark; montaram um clube noturno, o Hacienda, que com a ascensão do consumo de ectasy nos anos 80 teve seu sucesso tanto quanto uma iminente decadência. A história até virou filme do diretor Michael Winterbottom, o divertidíssimo A Festa Nunca Termina.
A música
Como diretor de arte, Saville criou a identidade visual de todas as bandas da gravadora, com total liberdade criativa e um estilo minimalista que tornou-se bem característico à Factory dos anos 70 e 80. Seu interesse por tipografia combinado ao estilo suíço de design – economia, clareza e comunicação otimizada – aparecem nitidamente na escolha tipográfica de Unknown Pleasures, debut do Joy Division. A capa da frente nem chega a apresentar texto, na verdade, apenas o padrão de ondas eletromagnéticas emitidas por uma estrela enquanto morria – o primeiro registro de estrela pulsante. No lado inverso e no encarte, título do disco e nome da banda aparecem escritos em Helvetica (curiosamente, a mesma fonte usada nos pacotes de antidepressivos que Ian Curtis tomava). Uma justaposição equilibrada entre o estranho e o familiar. A capa do segundo disco do JD, Closer, que estampa a fotografia de uma tumba em Genebra é, de acordo com o designer, também uma justaposição, mas entre o antigo e o contemporâneo (e criada e impressa antes da inesperada morte de Curtis).
Foi com o New Order, entretanto, que Saville passou a experimentar outras técnicas – e a ouvir os discos antes criar a arte deles. O single mais vendido da história, Blue Monday, foi inspirado no design de um disquete, uma novidade em 1983. “Na época, o lugar dos computadores era no escritório, não num estúdio de arte”, explica ao jornal The Guardian. “O disquete informou o design [do encarte] e o código de cores tem a ver com meu interesse pela estética que é determinada por máquinas. Por exemplo, os números no seu talão de cheques não são feitos para você, mas para uma máquina ler”.
Para a capa de Power, Corruption & Lies, um título um tanto maquiavélico, Saville visitou a National Gallery, em Londres, procurando um retrato de algum princípe sombrio. Voltou para casa com um cartão postal de uma pintura de flores do francês Henri Fantin-Latour. “Era uma ideia incrível. Flores sugerem a forma que poder, corrupção e mentiras se infiltram na nossa vida. São sedutoras”. Na contracapa um novo sistema de código de cores, mais um clash entre o pré e o pós, o antigo e o novo.
O britânico diz que na maioria das vezes os integrantes do New Order nem chegavam a ver a arte dos discos antes de o material chegar nas lojas – e olha que ele fez pelo menos dezesseis capas para eles. “Às vezes eles gostavam, às vezes não. Era um contexto totalmente único e que me moldou. No mundo real do design gráfico, o trabalho é sobre as outras pessoas [os clientes], não sobre você. Em quase toda forma de trabalho comissionado, ninguém quer saber o que aquilo significa pra você. Mas essas capas tinham a ver com o que eu queria fazer e, subconscientemente, eram sobre mim e para onde eu estava indo”.
Por esse motivo, ele sempre viveu no limiar entre designer e artista, em conflito com a profissão depois dos anos de Factory. Em outras gravadoras que trabalhou, como a Virgin e a Dindisc, onde fez a arte de álbuns do Duran Duran, Roxy Music, Peter Gabriel e Wham!, entre outros, não tinha a mesma liberdade, tampouco na agência de publicidade Frankfurt Balkind, onde trabalhou em 1993, em Los Angeles.
A moda
Nos anos 1980, Saville foi convidado por uma série de admiradores para fazer projetos para além da indústria musical, como a identidade visual da Whitechapel Art Gallery, em Londres. Foi nessa época que começou a trabalhar com moda. Continuou a fazer arte de discos, claro, como as das bandas de britpop Pulp e Suede nos anos 90. Mas fez também várias campanhas para Yohji Yamamoto, consideradas um ponto de guinada para a comunicação de moda, colocando pessoas reais como modelos ou sem nem mesmo incluir as peças de roupa da marca nas imagens.
Não simpatiza tanto com a indústria da moda, entretanto, categorizando-a como “um exercício de controle de massas e trivialidade tamanha que escraviza as pessoas ao consumismo”. Ainda assim trabalhou em parceria com John Galliano, na Dior, e Jil Sander; fez consultoria para Stella McCartney e Givenchy; desconstruiu o logotipo da Lacoste para uma linha de roupas em comemoração aos 80 anos da marca, em 2013. Fez até a camiseta que vestiu a seleção de futebol inglesa na Eurocopa de 2012. Em 2000, fundou a plataforma SHOWstudio com o fotógrafo Nick Knight. Colaborou ainda com a Supreme e com a Paco Rabbane.
O que nos leva de volta ao nosso caro Raf Simons. “Uma das primeiras coisas que capturou minha atenção quando eu era muito jovem foi o trabalho do Peter Saville. Especialmente, o trabalho que fazia para a Factory Records”, conta o estilista belga. “Eu não sabia de nada, então eu compreendia as coisas através de imagens. Não havia computadores, celulares. Eu não viajava de férias. Minha vida era literalmente a rua em que eu morava. Era muito ligado em bandas, como a gente é quando é novo. The Cure, Anne Clark e toda essa coisa new wave. De repente, surgiram as coisas do New Order. Power, Corruption & Lies com as flores e a coroa de cores. E eu fiquei: “o que é isso?”
Com imagerie minimalista, conceitual e modernista, Saville implicitamente lembrou Raf e os ouvintes desses discos que música não é apenas música. Tem a ver com a tal interzone, título de uma das faixas do Joy Division e termo que indica o espaço ou conexão que existe entre cultura jovem, arte e design, pop e modernismo, música e moda. Não é à toa que esses dois, pioneiros em convergir códigos culturais, parecem formar tão boa dupla.