Imagina que você está sentado já há algum tempo aguardando um desfile começar. De repente, a iluminação muda e entra um homem que começa um discurso sobre escravidão e liberdade e o que significa ser livre. “Nunca mais seremos escravos no corpo ou na mente”, diz. Assim começou o desfile da marca Pyer Moss, em Nova York, com uma fala inspiradora de Casey Gerald, autor de diversos livros, empresário e palestrante assíduo do TED.
De alguma maneira, as trajetórias de Kerby Jean-Raymond, fundador da Pyer Moss, e Casey, se cruzam, no sentido de que eles representam uma geração de mudança na cultura negra americana. Casey Gerald teve uma infância difícil, que poderia ter dado outro rumo à sua vida. Sua mãe era bipolar e desapareceu quando ele tinha 13 anos. Seu pai era viciado em drogas e vivia entrando e saindo da prisão. Mas seu talento enorme como escritor e orador e sua paixão por esportes o levou até Yale, Harvard, através de uma bolsa de futebol. Ele terminou os estudos com um MBA na Harvard Business School.
Por sua vez, Kerby sofreu preconceito racial quando jovem, especialmente em conflitos com a polícia que o incomodava apenas por causa de sua cor. Não faz tanto tempo, foi em 2016, que ele esteve na mira de três revólveres Glock 19 apontados para ele por um trio de policiais de Nova York. Tudo porque ele caminhava uma noite pelo Queens e um de seus braços estava com um gesso preto – para a polícia olhando de longe, aquilo parecia uma arma letal. Os oficiais então deram um conselho a ele: da próxima vez, faça um gesso amarelo. Apesar deste não ter sido seu primeiro “encontro” com a polícia, foi o mais intenso e deu a ele o impulso necessário para radicalizar seu trabalho na moda. “Percebi que tinha que usar meus desfiles para falar sobre esse problema. Ele não vai embora, está acontecendo em todos os lugares, o tempo todo”, disse à Vice.
Kerby virou uma voz poderosa e corajosa, que tem ampliado cada vez mais seu espaço na moda com coleções que falam com clareza sobre justiça social. Para ele, a moda não tem como andar sozinha; ela vem acompanhada de política, direitos humanos e necessidade de mudança. E Kerby e Casey são a mudança.
Essa abertura serve para contextualizar o momento atual da moda no geral, mas especialmente em Nova York, que tem a semana mais comercial entre as quatro principais. Nova York nunca foi o lugar para você ser disruptivo ou político. Em 2016, Kerby transformou sua passarela em uma demonstração do movimento Black Lives Matter e o resultado comercial foi catastrófico: ele teve um prejuízo de US$ 120 mil após varejistas retirarem seus pedidos porque viram sua mensagem como ruim para os negócios.
Mas o mundo vem em constante transformação e hoje são marcas como a Pyer Moss, que se posicionam, que dão sentido à moda. No ano passado ele levou o principal prêmio do CFDA, um baita reconhecimento e aval da indústria em relação ao seu trabalho. E neste ano, foi contratado como diretor criativo da Reebok.
Assim, de uma certa forma, a semana de Nova York está passando por uma revitalização, ainda que dividida entre opressão e liberdade, como o resto do mundo. Ao mesmo tempo que faz uma parceria com um dos empreendimentos mobiliários mais caros da história americana, construído com dinheiro do principal apoiador das campanhas de Trump, também sinaliza que precisa se atualizar dos assuntos que têm dominado esse mercado: igualdade racial e de gênero, diversidade e inclusão, respeito às mulheres e sustentabilidade.
Em Nova York, marcas como Echaus Latta, Sies Marjan, Christian Siriano, Vaquera e Gypsy Sport abordam essas questões, além de também trabalhar em um design autoral, afinal de contas, estamos falando de uma semana de moda onde o que deve ser primeiramente avaliado é a roupa.
A questão é que hoje, com os grandes espetáculos da moda, às vezes fica difícil para o público – e até muitos jornalistas – analisar friamente uma coleção quando você já enfeitiçado pela encenação. Desfiles em praias, parques de diversão, castelos, ruínas, desertos… até na muralha da China já teve desfile.
Mas algumas grifes já nascem e atuam com um posicionamento que não se descola, ele simplesmente faz parte do processo e a gente percebe quando é verdadeiro com a mesma facilidade que capta os oportunistas e washers do momento.
Até marcas mais do “establishment”, como Prabal Gurung, também tem usado a moda para passar mensagens políticas. Ele foi um dos estilistas que se recusaram a apresentar sua coleção no The Shark. Seu desfile, que celebra 10 anos da marca, foi criado com base na questão: “Who gets to be American?”.
Nascido em Singapura e criado no Nepal, Gurung já vestiu Kate Middleton e Michele Obama, mas ainda se encontra em situações onde se sente excluído por não ser a versão padrão de um americano, ou seja, branco. Em um momento em que os EUA e o mundo são atingidos por ideais nacionalistas, anti-imigrantes, juntamente com ataques contra os direitos das mulheres e de comunidades como LGBTQ+, o designer quis adereçar algumas dessas questões. “Temos uma grande plataforma e público. Deveríamos estar falando. Eu faço roupas de mulher. O atual governo está atacando as questões das mulheres. E eu não posso lucrar com elas e não estar falando sobre isso”, disse à editora Robin Givhan, do Washington Post. Assim, outros perfis de mulheres passam a surgir em sua passarela.
Naturalmente, tudo isso também reflete no casting. As modelos sudanesas Adut Akech e Anok Yai têm, mais uma vez, monopolizado as passarelas de Nova York, desfilando para Proenza Schouler, Tom Ford, Coach, Carolina Herrera, Jason Wu, Tory Burch e Ralph Lauren, entre outros.
Paloma Elsesser, que atua pelo body positivity entre as mulheres, estava muito acostumada a fazer campanhas (Fenty, Nike, Pat McGrtah), mas nesta temporada ela já desfilou para Prabal Gurung, Eckhaus Latta e Siriano. Sua fala habitual é: “ser gorda não é feio ou vergonhoso”, mensagem poderosa que precisa ecoar na passarela e além. A diversidade na passarela está deixando de ser algo que costumávamos ver somente no underground.
Seja através do tipo de pessoa que você escolhe representar enquanto marca, seja através de um call to action que traduza sua visão de mundo ou de um design corajoso e autoral – ou que seja só pelo deleite e entretenimento – um desfile deve representar uma experiência autêntica. E se a moda quer refletir os tempos e criar uma relação transparente com seu público, precisa olhar para as questões que o mundo enfrenta hoje não com o distanciamento habitual, mas como agente de transformação.