* Por Fernand Alphen, especial para o FFW
“Você nunca me viu na televisão, você nunca viu histórias sobre mim. O tipo de papel que eu tentei desempenhar foi de juntar peças de onde organizações possam surgir. Minha teoria é que pessoas fortes não precisam de líderes fortes”
Você provavelmente nunca ouviu falar da Ella Baker. Mas se você já sofreu ou já viu quem sofre de qualquer tipo de discriminação, cor, gênero, crença, preferência sexual, corrente política, gosto, mania, time do coração ou altura da barra da saia, deveria reverenciar essa defensora americana dos direitos civis.
Ninada na infância pelas histórias heroicas de seus antepassados, negros libertos que se revoltavam contra a escravidão, Ella já foi chamada de “Martin Luther King de saias”, o que por si só já esconde um preconceito do comum senso. Como se uma mulher precisasse de uma comparação com um homem para se destacar. Como se disséssemos que o Martin Luther King foi o Gandhi negro porque um negro para se notabilizar precisaria ser comparado com um branco, e o Gandhi um JFK oriental porque um indiano desse tamanho é suspeito.
Mas de fato, Ella fundou ou ajudou a fundar um número sem fim de organizações pelos direitos dos afro-americanos (inclusive a SCLC de Luther King). Em uma participação histórica com estudantes negros, ela convenceu os jovens que suas batalhas eram muito maiores que “um hamburger e até que uma coca-cola tamanho gigante” – ou seja, não vale a pena brigar por tão pouco – e que é através da ação de uma organização própria que podiam ir atrás de ideais mais ambiciosos.
A luta de Ella consistia em fazer as pessoas entenderem que todos têm um poder e que esse poder só pode ser usado através de uma ação grupal de contenção da violência. A não-violência inspira não-violência.
Quando nos interessamos por um personagem histórico, o vício consiste em procurar listar seus feitos, suas glórias, suas vitórias, suas medalhas. Mas muitas vezes, esse currículo, esse arco do triunfo, não passa de atribuições póstumas exageradas e meias verdades. A gente gosta do título e dos superlativos: “personalidade mais influente do século”, “aquela que fez o homem mais poderoso da terra ajoelhar-se” ou “a mulher mais rica e que tinha a maior coleção de perucas do universo”. Mas nada disso se aplica a Ella porque sua atuação era de incentivo e inspiração. Ela ia para a rua, para os palanques, para as trincheiras e barricadas, e, com o gogó, discursava, incentivava e principalmente dava às pessoas uma razão para lutar e nunca desistir.
Também adoramos pessoas que inflam o peito, falam alto, posam e requebram. Como se a fama não fosse consequência, mas causa. “Sou famoso e por isso posso apoiar grandes causas, dar conselhos, dar exemplo”. “É porque sou famosa que minha foto no jatinho particular com meu namorado rapper vai inspirar milhões de pessoas a serem como eu, linda e rica”. Ou linda, portanto, rica. Ou rica, logo, linda.
Nada podia ser mais distante dessa mulher extraordinária porque ela acreditava na bandeira e no grupo. Ella não fazia da humildade uma qualidade, mas uma arma. Ser humilde, não sobrepor seu nome à causa, não era uma opção de boa moça, era a própria causa. A humildade fortalece o grupo e o grupo sempre será mais forte do que a soma de pessoas, ainda que fortes individualmente.
Ella Baker tinha fome e não fama. Ela queria que as pessoas, organizadas e conscientes, tivessem fome também. Fome para igualdades de oportunidades para negros e não negros, mulheres e não mulheres, gays e não gays, muçulmanos e não muçulmanos, americanos e não americanos. Sua bandeira, mesmo que situada em um contexto histórico da causa dos direitos civis para afrodescendentes, transcende todas as épocas pelo símbolo que representa.
Em tempos de fundamentalismos brancos, heteros e cristãos, a mensagem de Ella não poderia ser mais motivadora. Em tempos de líderes que se vendem fortes e autoritários, lembrar-se de Ella Baker, que morreu em 1986 sem nunca transpirar nada sobre sua vida pessoal, é um conforto.
Mais sobre Ella no filme “Fundi, The story of Ella Baker”
* Fernand Alphen é garimpeiro amador, empreendedor e tem medo de Donald Trump
Colaboraram neste artigo Grégory Mertl e Renato Duo
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