Em toda sua programação, o Projeto Estufa abordou questões inerentes a esse novo mundo que vem se formando, com aulas e conversas sobre novas economias, tecnologias, sustentabilidade e criatividade. Com a moda não foi diferente. As marcas que desfilaram sob seu guarda chuva trouxeram uma nova energia, uma espécie de insurreição à moda tradicional.
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As marcas são novíssimas – a maioria em seu primeiro desfile. Elas têm estéticas próprias que as diferenciam uma das outras, porém estão unidas em sua visão de mundo: uma visão clara do contexto do mundo em que vive. Juntam-se a esse grupo a Cacete e a Piet, que estrearam no calendário oficial – a Cacete participou da primeira edição do Estufa.
É uma turma engajada, atenta aos acontecimentos políticos sociais e que não tem medo de se posicionar. Naturalmente, isso reflete em seu trabalho criativo: eles não têm medo de ousar. E dessa premissa surgem coleções com novas linguagens e propostas, combustível para a moda. Não se trata de inventar a pólvora, mas de alinhar política e design, associado ao seu estilo de vida e seu entorno. O que nós vimos na passarela representa o que eles são e no que acreditam.
O mindset é diferente. São marcas pequenas e que trabalham de maneira extremamente enxuta, mas que ainda assim veem abundância onde muitos se acostumaram a ver escassez.
Uma frase de Victor Hugo Mattos traduz bem essa ideia. “Meu exercício sempre foi produzir beleza a partir do que se tem. E para mim, é o melhor exercício de criatividade, porque me coloca na obrigação de me resolver com o que está a minha volta. Isso me traz independência e autonomia e a certeza de que nunca vai me faltar nada. Falta de material nunca será um pretexto”.
A Korshi também faz muito a partir do “pouco”. O principal conceito da marca é oferecer roupas com mais de uma utilidade, fazendo mais com menos tecido. Em um trabalho complexo com botões de pressão, Pedro Korshi cria peças que tem até outras seis funções, em uma coleção utilitária, minimalista e sexy. A associação entre street funcional e sexo já não é muito comum e aqui Pedro dá um passo para frente ao subverter o que é considerado sexy. Não só as meninas, mas também os meninos, desfilaram com maiôs cavadíssimos.
Esse é um outro ponto comum a todos eles. Feminino e masculino não existe mais da forma como conhecemos. Um dia, alguém decidiu que homem usa calça e camisa e mulher vestido e saia. Que a mulher pode usar salto e maquiagem e o homem não. Que menina usa rosa e menino azul. Que mulher não pode mostrar o peito e o homem pode. Esse conceito do que pode e não pode evoluiu: homens e mulheres podem vestir as mesmas coisas, se assim desejarem. A liberdade de escolha aparece de uma maneira real e sem utopia. Não é apenas uma roupa de efeito para passarela, ao contrário, essas peças já estão sendo usadas por amigos das marcas que refletem esse novo pensamento sobre o que é feminino e masculino. O que vale é como o indivíduo se sente em relação ao seu corpo.
Marcas como Piet e Mipinta criam roupas masculinas sem necessariamente usar códigos femininos, mas sempre em busca de uma liberação do guarda-roupa convencional. O que conduziu a pesquisa da Mipinta foi uma reportagem sobre uma faceta feminina de Santos Dumont, pai da aviação. Isso inspirou o estilista Fernando Miró a pensar no que as pessoas escondem dos outros e delas mesmas. Para simbolizar essa questão, ele colocou para fora partes escondidas da roupa, como o forro amarelo do blazer xadrez cinza, que floresceu em babados cheios de volume. E um estudo sobre a estrutura do paraquedas veio como uma alusão à liberdade. “Quero criar uma moda extravagante para o homem e libertá-lo do seu guarda-roupa convencional. Vestir-se já é uma manifestação política. Quando proponho um homem extravagante, ele já foge do conservadorismo, que na minha opinião é o principal problema do Brasil hoje.”
Percorrendo outro caminho, a Piet também se exercita para libertar o homem e oferecer mais liberdade na hora de se vestir, inserindo em peças do dia a dia elementos utilitários com uma combinação de cor fantástica e difícil de encontrar em uma loja masculina – que também conversa com muitas mulheres.
Vale destacar que a maior parte dessas marcas é dirigida por homens, mas que já entendem a mulher de outra maneira, de uma forma mais igualitária e menos fetichizada. O elemento sexy está presente, mas não é uma questão feminina.
Na apresentação de Lucas Leão, os meninos usam as mesmas botas de salto que as meninas, e também aparecem com body e mini blusa (termo da minha época e que hoje ganhou o nome de cropped). Suas peças de inspiração militar são usadas por um exército sem gênero, em um mundo em que a divisão dos seres humanos por categorias não faz sentido – além de fazer um paralelo com o momento político do Brasil, que dividiu o país sem dó.
Outro exemplo é o desfile da Cacete, que é mais do que sexy, é erótico, algo que faz parte da cultura da marca. Raphael e Tiago convidaram o ator pornô Blessed Boy para fotografar uma de suas campanhas e abriram um canal no Porn Hub para divulgar a marca. A coleção que mostraram é tão rica em produto quanto em conceito. Sua energia subversiva é verdadeira e ecoava no público presente, formado por artistas e influenciadores que vêm do underground e têm influenciado o mainstream com cada vez mais frequência.
Em uma época em que pega bem ser feminista, inclusivo e sustentável (social e meio ambiente), não é fácil para o consumidor decifrar quando uma grife está sendo honesta ou quando está simplesmente se aproveitando de temas que têm ganhado cada vez mais visibilidade no mundo. Porém, essas conquistas vêm de muita luta, de muito ativismo e dor. Até hoje vemos empresas de diversos países sendo acusadas de trabalho escravo. Até hoje, mesmo com tanto conhecimento disponível, marcas ainda nem começaram a rever seus hábitos e impactos. Até hoje há pouquíssima diversidade racial e de gênero em cargos de chefia.
Por causa de tudo isso foi revigorante assistir a esses desfiles. Nasce um novo grupo de moda jovem brasileira, mas com linguagem global e com uma visão de comunidade que as grifes mais antigas não puderam ter. E é impossível não sentir a sua energia e não ser impactado por ela.