*Esse conteúdo é parte da serie POTENCIALIDADES com curadoria de Jal Vieira publicada aqui e em nossas redes
Por Jal Vieira
Com um dos trabalhos mais sensíveis e potentes no universo da fotografia e das artes como um todo, o multiartista Rony Hernandes exprime, por meio da fotografia, algo para além da imagem. Em cada fotografia que cria, Rony transmite afeto e conexão à quem retrata e com cada pessoa que se depara com essas imagens. Lembro de a primeira vez que vi uma de suas fotografias me sentir num estado de ligação com aquela imagem e de emoção que eu nem sabia explicar o porquê.
O trabalho do artista que já alcançou, dentre os muitos espaços, uma das campanhas fotográficas da marca Ken-gá Bitchwear e a capa da revista Cult – cuja edição trazia a discussão sobre a desconstrução de uma masculinidade aprisionada entre o mito e a fragilidade –, reflete buscas e narrativas tanto pessoais, quanto de quem compartilha seu caminho.
Por todo o atravessamento que seu trabalho e sua existência causam em quem quer que cruze com esse artista é que o Potencialidades dessa semana se dedica em apresentar um pouco mais da trajetória e obra de Rony, por meio de um bate papo que tivemos. Confira abaixo:
Potencialidades: Me conta um pouco da sua trajetória de vida.
Rony Hernandes: Fiquei um tempo pensativo em qual rumo iria direcionar essa resposta para que não se tornasse uma dessas sem fim, então vou trazer a trajetória do Rony artista.
Paulista, artista múltiplo, bixa preta de 23 anos de idade. Era uma criança que gostava de registrar. Aos 13 anos de idade comecei a trabalhar para comprar uma câmera fotográfica – um mês e meio depois estava tirando foto de t-u-d-o que era possível e fazendo books de minhas amigas com minha cybershot. Com o intuito de estudar fotografia, com 15 anos fui morar com meu pai em Curitiba, aos 17 anos rolou um impasse no meu trabalho fixo (sonhar é ótimo, mas sempre precisei ter pé no chão e trabalhar em outras coisas). Teria que trabalhar no mesmo dia que tinha fechado um freela como fotógrafo. “Ou é um, ou outro, Rony”, disse meu chefe num tom positivo dando gás para que eu seguisse como a fotografia. Fizemos um acordo, fui demitido, mas não perdi o freela, que era registrar um aniversário infantil. Atrelado ao curso técnico em fotografia, iniciei aulas de dança, entrei numa escola para fazer hip-hop que com o tempo me rendeu uma bolsa para jazz, ballet e contemporâneo, fugia do ballet mas outras modalidades me ganharam, assim a dança tornou-se dispositivo criativo em meus registros.
Entre tantos caminhos percorridos, aos 19 anos já me sustentava apenas com fotografia, trabalhando inicialmente com tudo que aparecia. Com o tempo, fui lapidando meu olhar e os caminhos que preferia trilhar, e cá estamos sempre redescobrindo esse caminho e re-entendendo esse artista com sede do registro.
P.: Quando e por que você começou a fotografar? E o que isso significa na sua vida?
R.H.: Hoje, sei que a vontade do registro que tinha quando mais novo era de alguma forma poder contar os sentimentos que muitas vezes ficavam guardados, as sensações que são imensas em nossa adolescência e da tentativa de encontrar a beleza em mim. A fotografia me possibilitou entender que existem muitas coisas belas, tanto em mim, quanto em outras pessoas, que muitas vezes nós não enxergamos. Não sei ao certo quando iniciei na fotografia, mas lembro do momento que me enxerguei fotógrafo, que me enxerguei artista.
Finalizando meu curso de fotografia, iniciei um projeto denominado “Florescer”, que retratava pessoas que acreditavam que floresceram em algum momento da vida. Quando vi que podia falar do meu sentimento atrelado ao sentimento dos outros e que isso resultava em algo potente, algo bonito e importante pra quem estava sendo registrado (e até mesmo para quem irá consumir) eu entendi que era isso. Falar de sentimento sem que necessariamente a palavra seja usada, trazendo o registro como narrativa me faz enxergar a vida mais bela e me dá sede de retratar mais.
P.: Como se dá seu processo fotográfico com cada pessoa retratada?
R.H.: Trocar. Sempre penso: o agora é criação. ME PERGUNTO “O que você gostaria de contar agora?” Seja um ensaio pessoal, um editorial, um registo ao acaso ou até mesmo um trabalho autoral: o que vamos contar? Sempre sento pra partilhar vontades, ideias, bagagens e referências e assim chegarmos num possível conceito, lapidar tudo, e resultar nas respostas. Meu processo criativo é muito imersivo, mesmo que seja uma imersão de 15 minutos, junto o sentimento do outro ao meu possibilitando novas narrativas.
P.: O que o autorretrato representa no seu processo de autoconhecimento?
R.H.: Tudo. Acredito que o autorretrato traz uma potência gigante tanto para o trabalho de alguém que fotografa, quanto para bagagem pessoal de quem busca se enxergar. Demorei muito tempo pra me enxergar de verdade. Ao pensar em padrões de beleza sempre achei ser uma pessoa feia, na adolescência meus registros ou me embranqueciam (mesmo sem saber que estava fazendo isso) ou não mostravam meu rosto por completo. Mas eu sempre me retratava e, sem saber, estava trilhando uma jornada de afeto, amor e conhecimento do corpo que eu vivo, do rosto que tenho, da beleza potente que eu e todos nós temos. O autorretrato muitas vezes foi o espelho que eu não via.
P.: Como você encontrou, no atual cenário em que devemos manter distâncias físicas, saídas para continuar fotografando seus personagens?
R.H.: Então, sigo trilhando um caminho para possíveis soluções, uma delas foi a fotografia remota. Feita via FaceTime, vou dirigindo e registrando fotos durante a chamada de vídeo. Realizei 3 trabalhos como fotógrafo e um como modelo. É uma experiência muito legal ao pensar em criar a partir da limitação, mas realmente jamais será o mesmo que olhar no olho de quem se está fotografando. O que está me mantendo são vendas de obras já feitas, além de revisitar os trabalhos antigos e claro, me fotografar.
P.: Quem ou o que inspira o seu olhar?
R.H.: A vida. É isso, obrigado por ler até aqui.
Brincadeiras à parte, o que eu sinto reverbera em minha arte. Como pontuei anteriormente, crio com o agora, parto do pensamento que o momento influência em seu movimento e vice versa, ou seja, o que sinto meu corpo fala, logo isso influencia no espaço que estou presente. O espaço que estou presente reverbera sensações que se transformam em sentimento que influenciam meu corpo, meu olhar, meu registro. Se pensarmos que na vida há tantas coisas que nos fazem sentir, o agora, uma cor, uma sensação, um gosto, uma pessoa, um respiro… Tudo isso me traz gatilhos criativos. E tudo se intensifica quando atrelamos a uma rotina ligada a conversar com outros artistas. Seja direta ou indiretamente, o inconsciente vai guardando e muitas vezes cria “ao acaso” no agora.
P.: Quais mensagens suas fotografias querem passar?
R.H.: Fazer com que sintam. Minha história, minha ancestralidade, a força dos meus, a força de quem retrato. Permitir o sentir. Permitir enxergar, se desnudar, reverberar força para se registrar, de ver o tanto que existe muitas vezes no pouco. Desmistificar o tabu do nu, a masculinidade frágil, a sexualização dos corpos, mostrar o quão forte, sensível e poético é um corpo nu. E o quão potente é se permitir registrá-lo.
Tento criar combustível pra ser, pra sermos. Como uma artista que tenho a honra de chamar de amiga já disse, “é sobre ser, o resto é reflexo”.
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