Por Pedro João
Ao olharmos para tudo o que vem acontecendo no mercado de beleza nos últimos anos, é possível perceber uma dicotomia: de um lado está a maquiagem à la Kim Kardashian que ameaça tornar-se uma força hegemônica empregando o contorno excessivo do rosto para praticamente transformá-lo em outro (se possível, no dela); do outro, um discurso de auto-aceitação que parte de várias jovens marcas de maquiagem e novos influenciadores que trazem para a beleza a possibilidade de um mundo com menos cobertura e mais hidratação.
Ao mesmo tempo em que a Glossier da norte-americana Emily Weiss parece não parar de crescer – a empresa é 100% focada em produtos para enaltecer a pele e não para escondê-la –, a irmã mais nova do clã Kardashian, Kylie Jenner, tornou-se uma das mais jovens bilionárias do mundo com uma marca que nutre uma imagem que se apoia em um único padrão de beleza. “Eu sou totalmente contrário a esse contorno exagerado que está tão popular hoje em dia”, diz o maquiador Helder Rodrigues, no backstage da Mipinta, marca pertencente ao Projeto Estufa, que se apresentou sua última coleção dentro do projeto no SPFW N48.
“Acho, inclusive, que nossa relação com essa beleza não-normativa vai se radicalizar ainda mais. Não acho que todo mundo precisa estar o tempo todo com a pele com cara de recém-hidratada, brilhante, com viço, com glow, com blush ‘de vida’, etc. Eu, pelo menos, estou apostando em uma beleza seca”, continuou. O beauty artist refere-se a estética que ficou muito popular depois do surgimento da Glossier: peles sem base ou corretivo, mas totalmente brilhantes, lisinhas e rosadas. “A gente pode ir além! De repente, um risco azul em um olho, uma mancha diferente. Usar uma base mais clara ou mais escura para fazer de sombra no olho, sei lá…”, sugere.
A estreante Laura Prestes, autobatizada “Laurão” nas redes sociais, também acredita que, em breve, vamos começar a sair das fórmulas tradicionais de maquiagem. Ela fez a beleza do desfile do João Pimenta, que homenageou as mulheres lésbicas. “Chega dessa coisa de um lado tem que ser igualzinho ao outro, gente”, disse enquanto mostrava os olhos pretos com desenhos assimétricos que escolheu para alguns dos modelos da apresentação. “Apesar de trazer uma referência meio adolescente, eu gosto muito de citar a maquiadora responsável pela beleza de ‘Euphoria’”, diz.
Trata-se da americana Doniella Davy. Na série da HBO que retrata o dia a dia de diferentes garotas pertencentes à geração Z, a beauty artist mostra que ideias menos convencionais de maquiagem já têm respaldo entre as meninas de 15 à 17 anos no país. Não à toa, as belezas criadas (que levam elementos divertidos, traços coloridos e brilhos por todo lado) por ela estão sendo adaptadas mundo afora. No desfile da Lilly Sarti, o público não era exatamente as meninas superjovens da série, mas a beleza de Cris Biato conversava com o estilo das maquiagens das personagens. Olhos com um gatinho desconstruído e pontos dourados eram algumas das propostas.
Aqui no Brasil, a carioca Julia Tartari (que concebeu a beleza do desfile da ÃO neste SPFW junto com Branca Moura) não só acredita nesse novo comportamento frente à maquiagem como criou uma marca para atender especificamente este novo mercado. “Foi para isso que a MONA surgiu. É para a gente brincar, se divertir sem se transformar em outra pessoa”, contou enquanto terminava de colorir as veias das pálpebras das meninas que desfilaram para a marca do Projeto Estufa. “A maquiagem para mulher sempre esteve ligada a muita correção, a um sofrimento por não encaixar em um ideal, mas eu tento mudar isso.” As sombras cremosas de sua marca tem cores inusitadas e fluorescentes como amarelo, verde e pink e podem ser usadas nos olhos, mas a fundadora da empresa encoraja o uso delas como blush, batom, etc.
Destaque também para o trabalho de Mika Safro para o debut de Ângela Brito no evento. Transcendendo as ousadias em cores e texturas, a maquiadora investiu em elementos tridimensionais: pétalas de flores desenhavam shapes no rosto e no pescoço das modelos. Aliás, sua equipe – algo inédito no evento até aqui – era 100% composta por profissionais negros. O mesmo valeu para o casting. A Cavalera, por sua vez, convocou Nina Roiz para colaborar nesta temporada. No desfile, ela veio com uma explosão de cores distribuídas ora em blocos geométricos, ora em nuvens pela pele e até rabiscos selvagens apareceram por entre os inúmeros desenhos ali dispostos.
Claro que propostas tão fora da caixa como as de Julia para a ÃO (pense em manchas pelo rosto, tudo coberto de uma pomada brilhante que ela chamou de “geleca”) gerariam estranhamento fora do contexto do desfile e, evidentemente, não desbancam no mainstream apostas clássicas como delineado gatinho, boca vermelha e olho esfumado, mas abrir-se para viver algumas “invencionices” parece ser o caminho do futuro. “Até para o contorno”, diz Ziel Moura, responsável pela beleza do desfile emocionante de Isaac Silva, estreante no SPFW N48. “A gente não precisa também demonizar essa técnica. É possível contornar o seu rosto sem perder totalmente suas características.”
De modo geral, o que se ensaia é uma relação com a maquiagem que não esteja ligada a culpa por não preencher certos requisitos físicos. Uma relação mais saudável com o espelho que abre espaço para mil e uma possibilidades criativas. Se antes saíamos de uma semana de moda com uma lista de tendências para explorarmos, a regra agora é não ter regra: basta se conhecer e se divertir!