Se você acompanha o FFW com frequência, certamente já leu uma das colunas do Apolinário. Mas se ainda não ouviu falar dele, vale conhecer. E é só uma questão de tempo. Com 23 anos, esse menino “sem freio” e de energia contagiante ainda vai causar muito movimento na moda e fora dela.
Sua recém-criada marca Cem Freio não tem nem seis meses de vida e já está em ascensão, com espaço em publicações como FFW, Elle e Harper’s Bazaar. A grife trabalha a questão do gênero, ou melhor, do não gênero. “Não passa pela minha cabeça se quem vai vestir é um homem ou uma mina”, ele diz.
Criativo, agitador e agitado, Victor Apolinário ainda é ativo nas causas do negro e do gay, e pode ser encontrado nas boas festas da cidade – as que valem à pena ou as que muita gente ainda nem sabe que existe.
Nós nos encontramos uma tarde no café Elevado, região central de SP, e em uma longa conversa, Apolinário revela as dificuldades que enfrenta por ser negro e da periferia, do amor pela moda, da busca por igualdade social e pelo ponto do meio entre o feminino e o masculino.
Como foi sua infância?
Cresci no extremo Zona Norte e aos três anos fui morar com meus avós. Minha avó era muito libertária, o que foi ótimo pra mim, especialmente na adolescência, pois descobri muita coisa. Vou fazendo várias coisas, experimentando e vendo o que é pra mim. Tenho mais cinco irmãos, todos homens, e meus pais são casados até hoje. Eu tenho uma relação de fraternidade com eles, mas o sentimento de mãe é da minha avó.
Com quantos anos você saiu da casa da sua avó?
Aos 16. Fui morar sozinho na favela, também na Zona Norte. Fiquei lá por cinco anos e foi um dos melhores momentos da minha vida. Comecei a modelar e ganhar algum dinheiro também. E foi lá também onde eu aprendi tudo o que sei hoje, andar de skate, tocar bateria. Esse gueto é total real pra mim. Na comunidade a gente cria um sistema orgânico financeiro e de ajuda aos outros. Nesse período aprendi a me abster de algumas coisas e a criar um cromossomo de criatividade muito forte.
Você estudou em escola pública?
Sim, toda a minha formação acadêmica foi feita em instituições públicas.
E como foi seu contato com a moda?
Eu fiz faculdade de design. Com 17 anos fui trabalhar como assistente de visual merchandising na Hering do shopping center Norte. Depois de um ano, eu era coordenador de toda a operação de São Paulo. Saí de lá aos 20 como analista sênior de todas as marcas do grupo. Eu era a pessoa mais nova do rolê.
Daí rolou o convite da Box 1824?
Eu tinha um coletivo chamado Robô Tenso em que discutíamos questões do que seria esse futuro conectado. E fui pra Box no início de um projeto deles chamado Ponto Eletrônico e fiquei lá um ano e meio também fazendo conteúdo. Devo muito ao André Oliveira, que me ensinou tudo o que sei hoje sobre pesquisa. Também fiquei um tempo fazendo curadoria digital no Video Mix Brasil, quando conheci muita gente legal.
Então escrever foi um talento que brotou de forma orgânica?
Acho que escrevo de um jeito didático. Não sei se escrevo bem ou mal, mas as pessoas me entendem.
E como a Cem Freio surgiu na vida?
Foi no final de 2015. Passei por um período bem difícil após a morte da minha avó. Fiquei muito deprimido e sem produzir nada. Praticamente quatro meses sem sair de casa. Foi meu amigo Lucas Boccalao que me incentivou e falou para eu criar algo. Daí surgiu a Troos, que significa conforto em africanês. Era uma linha de conforto composta por camisetas, vestidos e bermudas feitas em malha, algodão e pima, bem voltado pro clima brasileiro. Produzi e fotografei os pilotos e divulgava pelo Facebook. Consegui vender 80 peças em uma semana. Eu confeccionava com uma costureira perto de casa, mas não fazia um real. Foi mais um caminho para eu sair da deprê. Mas quando vi que deu certo, resolvi re-significar.
E então você criou a Cem Freio?
Sim, eu queria estruturar melhor o trabalho, criar uma empresa de fato. Então parei a Troos e cheguei no sem gênero, que é uma das características da Cem Freio. Sempre tive essa discussão na minha vida. Criar esse terceiro corpo, um movimento que está começando agora, a coisa do queer. Achei que essa era uma frente que tinha que discutir. Encontrei um meio termo entre o confortável, o corpo e a discussão do gênero. Em fevereiro lancei o o perfil no Instagram como Cem Freio.
E de onde surgiu esse nome?
Era uma brincadeira que faziam comigo. Eu sempre fui sem freio, a definição de algo que não para, não tem bordas.
Você tem poucos meses de marca, mas ela já apareceu em revistas como “Elle” e “Harpers Bazaar”.
A grana ainda não está entrando, eu comecei há pouco e estou estruturando o meu trabalho. É um investimento de suor mesmo. Hoje falo que ela é utilitária e pensada para re-significar o corpo unissex. Não ficar nos extremos e entender o ponto central entre masculino e feminino. Estou na pesquisa de achar esse ponto do meio. Eu não penso se será um homem ou uma mina que vai usar. Minha roupa é quadrada, mas veste muito bem.
Com que materiais você trabalha?
Não uso nada sintético, uso 100% algodão e moletom. São roupas para o dia a dia.
Onde você vende?
Estou conversando com multimarcas como Gallerist, Farfetch, Pair. Tem peças que custam a partir de R$ 119, como regatas e camisetas. E tem as mais caras, que são feitas por encomenda e pintadas à mão. É um trabalho de upcycling, eu refaço todo o forro, bordo tudo à mão. Leva uns 20 dias para ficar pronta. É um “hot item”, sai por R$ 850. O Desampa e a Kelela têm uma. Ela veio para um show no Brasil e ficamos muito amigos.
Você se considera um auto-didata?
Totalmente. A maior parte das coisas que eu faço é por intuição. As roupas, eu faço em mim antes. Pego pano, alfinete e vou elaborando. Leva mais tempo, mas é a maneira de encontrar um processo que seja meu.
Você encontra outros estilistas negros por onde passa?
Não… Hoje eu sou uma das pessoas que representa a moda negra no Brasil na minha área. Além de mim, tem o Luiz Claudio, da Apartamento 03, e o Wilson Ranieri.
E onde estão os outros Apolinários?
Olha, eu não tenho fluxo de caixa para me sustentar. Me desdobro em 50 para fazer a Cem Freio dar certo. Remunera-se muito mal no mundo da moda. Se você é negro e mora na periferia, não consegue fazer só isso porque não paga-se bem. Ainda somos uma classe periférica e não podemos trabalhar com moda porque não dá para se sustentar. Hoje eu vivo de favor com um amigo porque não consigo pagar aluguel. Estou apostando muito na Cem Freio e acho que as portas que estão se abrindo me fazem acreditar que vai dar certo. O mercado de moda é muito branco, classe alta e colonizado.
Como você trabalha essa questão no seu dia a dia?
Eu procuro discutir isso no meu trabalho, buscar colaboradores negros, da modelo ao maquiador e stylist. Não é uma regra, posso trabalhar – e trabalho – com qualquer pessoa, mas tento estar próximo da minha galera nesse sentido também. Acho importante eu ser essa pessoa que é considerada e está fazendo um trabalho bom. A partir do aval que eu tenho no FFW, na Elle, eu consigo abrir portas para um monte de gente. E esse é o lance que faz com que eu me levante todos os dias. E eu quero alcançar essas pessoas. Eu não super valorizo o meu produto, quero que meu trabalho seja acessível. Mas acho que as coisas estão melhorando e têm mais meninas e meninos trabalhando como modelo hoje e representando a classe.
E nas outras profissões você sente o mesmo?
Temos que entender nossas raízes e fazer um esforço para que a próxima geração chegue um passo à frente e não sofra tanto. Está na hora de a gente criar um mundo negro. A gente não é mais a galera da limpeza, a gente é CEO.
Veja abaixo um ensaio feito pelo fotógrafo Hick Duarte e mais imagens de looks da Cem Freio na galeria abaixo.
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