Priscilla Rezende, a (amada e odiada) blogueira Shame ©Carla Valois/FFW
Com um layout simples, frases de efeito e gifs improvisados, Priscilla Rezende, de 37 anos, pôs fim à paz no restrito cotidiano das blogueiras de moda, um espécie de espetáculo orwelliano da vida contemporânea, repleto de inaugurações em lojas, jantares em restaurantes de luxo e dicas de produtos “essenciais” de beleza. Sob o pseudônimo de Shame, a mineira expôs o que acreditava estar errado nesse meio, dos jabás aos “looks – falhos – do dia”: ao apresentar as imperfeições e desvios éticos de muitas dessas novas estrelas midiáticas, Priscilla encontrou apoio, mas também críticas severas a sua postura virtual.
Em julho deste ano, após um engano com a sincronização de suas contas de Twitter e Instagram, a identidade de Priscilla como Shame foi revelada: a especulação dominou as redes sociais até a mineira se pronunciar durante a edição de 2012 do festival YouPix, em um bate-papo com Julia Petit e Caio Braz. Apesar da nova e intimidante notoriedade, Priscilla continuou com o blog, que só fez crescer e hoje recebe cerca de 150 mil visitantes diários. As tiradas de Shame, incômodas para alguns, também ajudaram a questionar a transparência na internet e a forma como as marcas se utilizam da plataforma para ações publicitárias.
Após um bate-papo no último sábado (29.09) no SP.ECOERA, evento organizado por Chiara Gadaleta em São Paulo, que teve como tema justamente a ética em blogs de moda, Priscilla conversou com o FFW e, sem papas na língua, falou tudo o que pensa sobre publicidade na internet, sobre o incentivo ao consumo surgido com esses novos veículos e sobre a vida de aparente glamour de algumas blogueiras, além de explicar a pressão que é viver no anonimato. Confira abaixo a entrevista completa:
Como surgiu o blog e como foi a manutenção dele inicialmente? E a repercussão, como começou?
O blog começou porque eu precisava desabafar em algum lugar. Eu tinha recém me mudado para o Rio Grande do Sul, morava em uma cidade no fim do mundo, e lá não tinha amiga nenhuma, minhas amigas ficaram todas em Minas Gerais. E eu não aguentava ver aquilo, principalmente os jabás, as mentiras e os “Looks do dia”; eu não me conformava e pensava: “Gente, como essa menina acha que tá legal? Alguém tem que falar para ela”. Ou “Esmalte do dia” e as unhas mal feitas… mas a minha revolta inicial foi mesmo por causa dos jabás, de blogueira falar que comprou [o produto] porque gostou, mas que eu sabia que era mentira, eu estava ali no meio, conhecia tudo, sabia dos casos!
Layout do “Shame on you, blogueira” ©Reprodução
[Antes do blog] eu já falava no Twitter, mas um dia senti necessidade de publicar as fotos que via, aí comecei o “Shame on you, blogueira”. Só que nesse início eu só contei para as minhas amigas, pouquíssima gente sabia porque eu não divulgava […]. Aí um dia, não sei como, a Julia [Petit] me descobriu. Quando isso aconteceu eu tinha só 35 seguidores no Twitter. Depois disso virou uma avalanche, uma bola de neve, o povo ficou sabendo e na mesma semana já tinha 15 mil acessos diários, o que para um blog recém-aberto é muita coisa. Hoje são 150 mil.
No começo eu que via as coisas e postava no blog, mas depois as pessoas começaram a me mandar conteúdo. Hoje eu tenho 1.800 e-mails não lidos só de contribuição, meu trabalho hoje é só publicar, eu virei a porta-voz do povo. O “Shame” é o povo; pouca coisa ali no blog é minha, uns 5% que eu vejo por acaso e posto. Enfim, foi virando essa bola de neve e eu não me dava conta do que estava acontecendo, porque fiz tudo sem pretensão nenhuma, eu não queria “causar”, dar “bafão” ou criar inimizade, fugiu do meu controle.
Mas você é farmacêutica, certo? Como você conhecia as pessoas do “meio” dos blogs de moda?
Porque eu tinha um blog quando morava em Belo Horizonte. A gente queria abrir um blog para vender maquiagem, que chamamos de Sacola Phyna. No começo várias meninas escreviam, mas depois a maioria saiu e eu fiquei com dó de fechá-lo e continuei. Como sou farmacêutica e faço pós-graduação em Pesquisa e Desenvolvimento de Cosméticos, sabia muito do assunto e passei a focar nisso, em mentiras de xampu sem sal, etc. Foi por causa desse primeiro blog que eu conheci várias blogueiras e muita gente de assessoria de imprensa, então vivia nesse meio apesar de ser farmacêutica.
O engajamento dos leitores ao “Shame on you, blogueira” foi natural ou você incentivou?
Foi espontâneo. Nunca incentivei. Acho que faltava alguém para “denunciar”, o povo estava cansado e de saco cheio: veio todo mundo desabafar no meu blog!
Anna Wintour em GIF do “Shame on you, blogueira” ©Reprodução
E os GIFS que você usa?
Foi ideia minha porque não queria escrever muita coisa para não abrir um precedente e quererem me processar. Hoje em dia é tudo processo, né? Então decidir escrever o mínimo possível, mas aí também ia ficar chato, então resolvi colocar os GIFS, e virou uma espécie de “marca registrada”.
A pretensão era continuar com o blog anonimamente?
Não, eu já pensava em me revelar. Até falei com a Julia [Petit] e o Caio Braz que era muita pressão em cima de mim, eu não estava aguentando. Eu trabalho com redes sociais e gerencio contas para empresas, então meu HootSuite tem seis abas de clientes e é uma loucura. Já tinha acontecido de postar com o perfil trocado ou responder coisas no perfil da Shame com o meu perfil pessoal. Tinha gente que ficava fazendo chantagem para descobrir quem a Shame era, ficavam ligando para a agência que cuidava do blog, etc. Enfim, estava muito pressionada por todos os lados e perguntei pra Julia o que ela achava de eu me revelar, ela disse que achava que ia ser um alívio, mas que eu tinha que saber como fazer.
Já estávamos amadurecendo a ideia quando aconteceu o episódio do Instagram, que foi acidental. Eu vi o que tinha feito, mas não tinha mais como voltar atrás. Isso aconteceu em um domingo e na terça-feira eu iria participar do YouPix, ia falar com a voz alterada, mas isso aconteceu e eu decidi não acompanhar a repercussão até o evento. No começo, [a equipe do YouPix] abriu só o áudio e depois soltaram o vídeo e me mostraram. O meu posicionamento após a “revelação” foi não procurar saber e esperar a maré baixar, o que foi melhor para mim. A polêmica durou só uma semana, depois já voltou tudo ao normal.
O erro na sincronização das contas de Twitter e Instagram e a revelação ©Reprodução
As blogueiras que eram expostas no seu blog, mesmo que com o rosto coberto, chegaram a entrar em contato com você, antes ou depois da sua identidade ser revelada?
Não, elas nunca vieram atrás de mim. Nenhuma delas nunca me mandou e-mail, nem depois que descobriram quem eu era. Já as “talifãs” [fãs + Taliban] são piores, é uma loucura o amor que elas têm. Tem blogueira que tem tanta talifã que eu nem gongo mais, porque dá preguiça depois de tanto “chororô”! E o que acontece? No blog, eu não gongo a pessoa, mas a ocasião ou a roupa que ela está vestindo e é por isso que eu não cito nomes e cubro o rosto delas. O problema é que o povo leva para o lado pessoal, pouca gente percebe que eu não estou zoando a pessoa, às vezes eu coloco uma “Louca do dia” e vem um monte de comentários do tipo: “Ah, mas esta menina é tão simpática, não merece estar aqui”, mas nossa, quando eu falei que ela não é?
E o “Look do dia”? Você acha que a fórmula já se esgotou?
Ah, pelo amor de Deus! São as adolescentes, meninas com baixa autoestima e de aceitação que mantêm o “Look do dia”, que acham que “x” blogueira tem aquela vida só de inaugurações e ir a semanas de moda internacionais, e isso não existe! Mas a adolescente lá, que vê o blog e está cheia de frustrações, se espelha naquilo: a Thássia [Naves] posta o “Look do dia” e a leitora quer ser ela; então como ela, a leitora, não pode ser a Thássia, ela vai e veste a mesma roupa, é uma forma de aproximar daquela realidade que não existe.
A blogueira não acorda bem vestida, maquiada e escovada como nas fotos, então acho que se o “Look do dia” dura é por causa dessa ilusão. É tudo um buraco muito mais embaixo, coisa de psicólogo mesmo. É sério, o glamour da riqueza enfeitiça: as blogueiras ricas, que são as que fazem mais sucesso, exercem um fascínio maior que pessoas que criam blogs com conteúdo. É igual a celebridade, só que em outro patamar, as pessoas invejam o estilo de vida delas e pensam: “Ah, a menina não precisa estudar, não precisa trabalhar e ganha não sem quantos mil por mês”.
Hoje em dia o povo não quer conteúdo, eles não querem ler ou ter que pensar, é só casca, aparência! Existem muito blogs bacanas, com conteúdo produtivo, mas que não são comerciais, não dão dinheiro e as marcas não vão apostar ou investir neles. […] Criar blog é o caminho mais fácil, inclusive já vi uma menina que escreveu um post dizendo que a melhor forma de ser jornalista de moda hoje é criando um blog, e não cursando a faculdade.
E a questão das blogueiras estarem se tornando celebridades do segmento? Elas sentam na primeira fila de desfiles e influenciam o consumo de pessoas que têm padrões de vida completamente diferentes.
Eu já vi menina chorar porque viu “x” blogueira, aos prantos mesmo. Já vi a Thássia [Naves] dar autógrafo em sapato, então, gente, cadê a mãe dessas meninas? Tem menina que quer ser a Gisele, mas tem outras que querem ser a Lala [Rudge].
Eu acho que a maioria das leitoras é de classes mais baixas que a das blogueiras; acho que meninas de classe A ou B não olham blog e se leem é o da Lala [Rudge] porque a conhecem de algum lugar. A maioria das leitoras é de classe C e imagina que tristeza elas vendo coisas que não vão poder comprar nunca, só um batom da Yves Saint Laurent custa uns R$ 150! Aí entra uma coisa que a Julia [Petit] falou [durante a conversa no SP.ECOERA]: as blogueiras não têm noção do que elas fazem com a vida e com a cabeça das pessoas! Têm meninas se endividando e querendo não estudar para ter um blog de moda; isso é muito grave!
Tudo que blogueira famosa usa se esgota nas lojas. É uma loucura. Bem ou mal, as marcas investem porque sabem que vai vender. […] Eu li um post da Lalá Noleto esses dias que fiquei chocada: teve uma ação da Dove muito legal com mulheres ativistas do mundo inteiro que vieram dar palestra em São Paulo. E a Lalá Noleto chegou superatrasada, ela deve ter ganhado muito dinheiro para ir, acho que ela cobra 4 ou 5 mil para ir em um evento, e diz que ela ficou 30 min lá e foi embora e depois escreveu um post assim: “Gente, vocês sabiam que no Irã as mulheres são apedrejadas? Vocês sabiam que na África algumas mulheres têm o clitóris extirpado?”. Fiquei muito chocada, havia conteúdo para uma semana, então ou ela se fez de burra ou ela é burra.
Você acha que as blogueiras estão sendo mal-acostumadas pelas marcas e assessorias de moda?
Eu acho que a culpa é de todo mundo, mas acho que elas estão sendo mal-acostumadas, sim. Se as marcas começarem a cobrar uma postura e conteúdo melhor e pagarem só metade quando uma blogueira chegar atrasada em um evento ou escrever um post-lixo… O pessoal está começando a acordar e a festa está acabando. Você pode ver que os patrocínios já estão diminuindo. A bolha já estourou! As marcas vão parar de investir, ou diminuir drasticamente, porque já está queimando o filme delas.
E qual posicionamento o Conar deve adotar?
O Conar tem um manual de ética próprio, que vale para qualquer tipo de publicidade. E publicidade em blog e em revista eletrônica é a mesma coisa, então o manual deles está lá, quem quiser fazer as coisas direito é só ler. Acho que o que tem acontecido não é falta de conhecimento, tem gente que se faz de boba, mas já que ele entrou nesse último caso (relembre aqui), por que não fazer uma cartilha, um passo-a-passo, para ninguém ter a desculpa de falar que não sabia?
O mercado de blogs nacionais copia o que é feito lá fora?
Totalmente. Tudo que sai lá sai aqui depois, até as roupas são as mesmas. […] O sonho da blogueira brasileira é ser igual a Chiara [Ferragni, do The Blonde Salad] ou a Emily [Schuman, do Cupcakes and Cashmere]. O sonho das leitoras adolescentes é ser a Thássia [Naves], mas a Thássia quer ser como elas [as internacionais]. É uma cadeia: as blogueiras internacionais assistem desfiles na fila A e ganham caixas e mais caixas de presentes e ainda fazem linhas em parceria com as marcas, é muito dinheiro.
Qual dessas blogueiras brasileiras famosas tem identidade? Nenhuma. É tudo cópia. Eu falo que é tudo clone fabricado em larga escala, é tudo igual: cabelo igual, roupa igual, óculos iguais, etc.
Você vê futuro no “Shame on you, blogueira” sem essas blogueiras?
Acho que nunca vai faltar assunto. Nunca vai faltar gente para ser “gongada”. Mas também tem dias que eu encho o saco e penso em nem ter blog mais; parei de postar sábado e domingo porque eu me irrito com alguns comentários, preciso de um descanso semanal. Já tive até pesadelo com as blogueiras me atacando na rua!
Você, como Priscilla Rezende, o que gosta de olhar na internet?
Gosto muito do Oficina de Estilo, acho muito legal porque as meninas falam coisas úteis para gente “normal”. Gosto do Petiscos; do Dia de Beauté, da Vic [Ceridono]; antigamente gostava muito do 2Beauty, da Marina Smith, mas acho que ela desvirtuou um pouquinho o propósito, só que ela é muito ética, ela é uma blogueira bacana. Dos internacionais, gosto muito do The Sartorialist.
+ Opinião vs. Publicidade: a questão da ética nos blogs de moda