A semana de moda de Paris terminou provocando algumas reflexões. Enquanto aconteciam os desfiles, o surto de Coronavírus seguia assustando na China e entrava na Europa, através da Itália. Lá, somente Giorgio Armani mudou a forma de seu desfile: ele aconteceu, mas de portas fechadas, sem convidados, e foi transmitido ao vivo. Em Paris, a Agnès B, a Cartier e mais cinco marcas chinesas cancelaram sua participação, mas de resto tudo seguiu como previsto. Ou quase. Convidados dos desfiles usavam as máscaras de proteção que eram entregues na entrada e, na Miu Miu, tinha gente tirando a temperatura de todos que entravam. A cidade estava em ebulição com os primeiros casos de Coronavirus confirmados, protestos contra a reforma da previdência e policiais altamente paramentados nas ruas.
O que, naturalmente, leva as pessoas a questionar: em tempos obscuros, qual o papel da moda? E são essas perguntas que abrem espaço para a ideia de que a moda funciona alheia a crises e é insensível aos acontecimentos do mundo.
O fato é que nem a moda nem uma outra indústria param, exceto em situações extremas (tragédias naturais, terrorismo, guerra civil e, claro, epidemias). Fato é que já vimos “a vida continuar” em meio a situações de medo e incerteza. Fábricas continuam produzindo, cinemas, restaurantes, shoppings e museus se mantém abertos e movimentados (até o fechamento desta matéria, somente o Louvre em Paris havia fechado por alguns dias).
O episódio do 11 de setembro aconteceu no meio da temporada de moda de Nova York. A NYFW foi suspensa, mas as outras semanas continuaram, mesmo sob uma situação nova e assombrosa. Apenas alguns estilistas conseguiram modificar suas coleções a tempo do desfile pois a que haviam preparado não fazia sentido algum naquele momento.
Centro da epidemia, com quase três mil mortos e mais de 80 mil pessoas infectadas, a China foi extremamente afetada pelo Coronavírus e precisou paralisar fábricas e mudar drasticamente a rotina de milhões de cidadãos.
Já a Itália, que registrou o vírus em uma área pequena do país, fez um pedido oficial aos turistas diante da onda de cancelamentos, para que eles não deixem de visitar o país. “Nossos filhos vão à escola. Se eles vão à escola, turistas e empresários também podem vir”, disse Luigi Di Maio, ministro das Relações Exteriores. A Itália é um dos países mais visitados do mundo e o turismo é uma de principais indústrias, cuja contribuição a economia italiana tem crescido constantemente e deve chegar a cerca de 268 bilhões de euros em 2028.
CAOS
Dizem que a moda é um espelho da sociedade e reflete o que acontece ao seu redor. E isso é verdade, mas se aplica a um nicho da indústria ocupado por estilistas que usam seu espaço para pensar, entender a sociedade atual e também a história e buscar um caminho e uma estética que dialogue com os tempos de hoje, que reflita sobre o momento presente e, mais do que tudo, que faça sentido.
Nesta estação, o desfile mais comentado foi o da Balenciaga com seu cenário apocalíptico e plateia inundada de água. O diretor criativo Demna Gvasalia que vem do Leste Europeu capta como poucos o que acontece em diferentes camadas da sociedade fora da bolha da riqueza e do luxo, pois já viu e viveu preconceitos, injustiça e regimes políticos severos.
Suas coleções sempre foram também observações sobre o mundo real, do agora e esta do Inverno 2020 não foi diferente. Sua visão catastrófica do presente vestiu o momento atual com perfeição, mas sua inspiração veio de suas lembranças de quando frequentava a igreja ortodoxa na Geórgia e a austeridade e minimalismo das vestes religiosas.
Outras marcas que também foram aplaudidas por se conectar com o momento foram Rick Owens e Comme des Garçons com suas coleções que mais questionam do que respondem. É bom lembrar que, faça guerra ou faça amor, elas sempre foram assim. Mas é fato que seu olhar cabe hoje como definição do caos e da incerteza e também, por que não, de liberdade.
Muitas marcas usaram, com intensidade maior do que o habitual, a cor preta, como se estivessem antecipando os tempos sombrios que vêm com uma epidemia. Neste sentido, quem chamou mais atenção foi a Valentino, sob o comando dePierpaolo Piccioli que nos acostumou com sua cartela de vermelhos, rosas pálidos, verdes. “O que queria fazer era o retrato de um momento, sem categorias. A moda tem que registrar e abraçar as grandes mudanças no mundo. Temos que incentivar a tolerância e a igualdade”, disse Pierpaolo. No desfile isso foi explorado também através do casting, que teve modelxs trans, meninos, modelos não tão magras (Jill Kortleve) e também mulheres mais velhas (Malgosia Bella, Amber Valetta) na passarela. Porém, mesmo em preto, a mensagem que a coleção passa não é uma de urgência, mas sim de uma beleza que não tem tempo.
Na McQueen, Sarah Burton se perguntou “sobre o que você fala quando há tanto barulho?”. Ela pensou em mulheres guerreiras e heróicas que se vestiram com a alfaiataria mais afiada e impecável da temporada.
Da nova geração, a francesa Marine Serre e o japonês Kei Ninomiya também pareciam refletir a sensação de incerteza que comanda o mundo hoje. Duas coleções brilhantes, por razões distintas. Marine faz uma espécie de ativismo na passarela, trazendo para suas coleções assuntos como mudanças climáticas e derramamento de óleo, mas de uma maneira extremamente atraente. Já Ninomiya é um verdadeiro arquiteto e se joga em territórios novos a cada coleção. Seu mais recente desfile é impactante e carrega certa agressividade nos grandes volumes negros, mas não deixa de nos impressionar com sua técnica e coragem.
BELEZA
Mas para tudo neste mundo existem dois lados. E se temos as marcas que espelham o barulho e o caos, há também as que buscam momentos de calma, pausa e beleza.
Dries Van Noten e Jonathan W. Anderson na Loewe estão nesse grupo. Eles refletem a contemporaneidade ao mesmo tempo em que oferecem um respiro. Mesmo tomando riscos enquanto designer e em busca de novas silhuetas, Anderson é leve e arejado, tanto em sua marca quanto na Loewe. Suas roupas são bonitas, inteligentes, nada comuns e falam com a mulher hoje através deste viés.
Dries, o mais habilidoso colorista da moda, cria há anos roupas para mulheres que pensam. Sua obsessão por flores virou também um dos pontos mais marcantes de seu design e, a cada estação, ele cria um novo jardim através de suas roupas (“um lugar não é um lugar se não houver flores nele”, ele diz). Nesta coleção do Inverno 2020, Van Noten disse que é sobre aproveitar a vida e se divertir.
Portanto, se temos quem ecoa os dissabores do mundo hoje, também temos os poetas. Analisar a moda buscando culpados é pouco porque o assunto é um pouco mais complexo e, convenhamos, tudo tem dois lados. E a gente precisa ver luz em cada sombra, pois de outra forma, não viveríamos.