Sex Sells. Essa é talvez uma das maiores verdades do capitalismo moderno. Desde que o comprimento dos vestidos passou a mostrar as canelas das donzelas e os corpos masculinos deixaram de ser cobertos por tantas camadas, temos ansiado por mais pele à mostra em um constante jogo de sedução, uma brincadeira de esconde e revela. O sexo é um de nossos instintos mais primitivos e a moda nunca o deixou de lado, responsável por acompanhar o vestuário dos mais conservadores aos mais extremos.
Talvez não um espelho dos tempos, mas definitivamente um reflexo abstrato, a moda nos ajuda a entender o fetichismo e a sexualidade no vestuário. Apesar de ser difícil apontar precisamente o começo de tudo, de tempos em tempos, o fetiche volta a ser pauta central na moda.
A ORIGEM DO FETICHISMO NA MODA
Couro, látex, bondage, cordas e outros itens usados a princípio nas casas de fetiche, têm sua popularidade muito ligada à comunidade LGBTQIA+, na prostituição (uma das profissões mais antigas do mundo), no BDSM e suas variações. Segundo uma matéria do The Guardian, o fetichismo, historicamente emerge depois de crises econômicas, grandes eventos ou traumas coletivos – parece familiar? Existe, inclusive uma controversa teoria de Freud em que o fetiche é interpretado como resultado do trauma.
Essa nova onda do fetichismo vem como uma reação ao lockdown e às diversas crises (morais, éticas e econômicas) do século XXI. Em momentos como esse, mergulhamos a fundo nos nossos desejos mais profundos e hedonísticos, como um Carpe Diem, ou YOLO: só se vive uma vez. Nesse sentido, a moda não deve deixar o fetichismo de lado muito em breve.
Segundo Jennifer Richards, em entrevista ao The Guardian, o termo fetiche foi cunhado ainda no século 18 e se tornou popular nos anos 1920 – exatamente no pós 1ª Guerra Mundial – com a companhia francesa Yva Richard, que vendia sapatos, lingeries e chapéus. Uma das peças era um sutiã cônico de metal. A peça é um precursor do sutiã cônico de Jean Paul Gaultier, um dos principais nomes quando pensamos em fetichismo e BDSM na moda.
Moda e arte andam juntas e o fetichismo também caiu nas graças da arte e do homoerotismo nessa época. O artista Tom of Finland, é um dos grandes nomes desse movimento com seu trabalho de caráter homoerótico, venerado dentro da comunidade LGBTQIA+ até os dias de hoje – recentemente, Jonathan Anderson se inspirou nas obras do artista para uma coleção cápsula com os emblemáticos desenhos. Peter Berlim também teve um trabalho significativo no ramo nos anos 60, com suas selfies eróticas, sexualizadas e demarcadas pelas calças de couro bastante justas.
Outro nome importante nos primórdios do fetichismo e BDSM (Bondage, dominação, submissão e sadomasoquismo) na moda é o designer de moda austríaco Rudi Gernreich (1922 – 1985). Fugindo da Alemanha nazista, Gernreich encontrou refúgio nos EUA e no movimento LGBT, começando a usar o design de moda como uma forma de expressar sua sexualidade e personalidade. O designer foi responsável pela criação do monokíni e da calcinha “thong”, recebendo grande destaque e notoriedade nos anos 60. Rudi tinha uma visão bastante avant-garde e inovadora sobre moda, sexualidade e a sexualização dos corpos, e influenciou grande parte dos nomes que vieram depois dele, principalmente designers como Helmut Lang e Thierry Mugler.
MODA E FETICHE na modernidade
Vivienne Westwood, Helmut Lang, Thierry Mugler e Jean Paul Gaultier são nomes importantes para se entender o fetichismo na moda durante a modernidade e final do século 20. Além da popularização do punk e das subculturas britânicas na moda, Westwood também foi uma personagem importante no fetichismo da moda. Nos anos 70, ela conheceria Malcom McLauren, seu parceiro romântico e profissional à época, e ambos abririam a boutique SEX, em Londres, em 1971. Com seu estilo inspirado no punk, no motociclismo e no fetichismo, com muito couro e látex, a loja rapidamente se tornaria um antro da galera alternativa da cena londrina – e dali sairiam os Sex Pistols, inclusive.
Também nos anos 70, Thierry Mugler apresentaria suas primeiras coleções, já repletas de sensualidade e erotismo, com destaque para o que viriam se tornar uma assinatura do designer: os corsets. A visão aberta de Mugler sobre sexo e sexualidade obrigaram a moda a se atentar a isso e nos anos 80 e 90 o designer trouxe para as passarelas do luxo de Paris as roupas inspiradas no fetichismo e no BDSM, com chicotes, correntes e látex.
“O fetiche sempre esteve presente na moda. Desde o surgimento da moda como a entendemos hoje, acessórios como sapatos, corsets, perucas e leques foram usados para seduzir. Mesmo os vitorianos foram fetichistas!” conta Heitor Werneck, produtor cultural e fundador da marca Escola de Divinos, marca nacional muito conhecida nos anos 90 por sua estética fetichista. “Nos anos 20 surgiu a androginia na moda, depois vemos cinturas marcadas, bojos em sutiãs e o apogeu de tudo isso foi nos anos 80 com o punk e acessórios sadomasoquistas. Logo depois, a utilização de tecidos como o vynil, látex e couro por pessoas como Madonna expôs a cultura BDSM à cultura pop” continua.
Com o uso também de couro, harnesses e outros artefatos de bondage, Jean Paul Gaultier também teve um papel importante nesta década com a introdução da parafernália do hardcore em suas coleções. Mais tarde, nos anos 90, a Versace lança a coleção “Miss S&M” e começa a trazer inspirações no Bondage, com cintos e fivelas de couro, bem como corsets, incorporadas aos looks que se tornariam alguns dos mais icônicos da etiqueta. Ao falarmos de Jean Paul Gaultier, é impossível não mencionar Madonna aqui.
Para além do sutiã cônico, a estrela pop foi muito responsável por popularizar o estilo bondage e BDSM no mainstream – ela chegou a lançar o livro “Sex”, fotografado por Steven Meisel -, além de ter um papel importante na libertação sexual das mulheres na cultura pop.
Na primeira década dos anos 2000, bastante caracterizada por uma libertação sexual – especialmente feminina – e desvalorização do conservadorismo, a moda vive um momento libidinoso. É impossível não lembrar das ousadas e hipersexuais coleções e campanhas de Tom Ford para a Gucci em seu período como diretor criativo da marca. A Versace, já com Donatella, também teve seu período de publicidades extremamente sensuais. Ambas marcas tiveram grande sucesso comercial nesse momento, provando que sim, sexo vende.
A NOVA ONDA DE FETICHISMO NA MODA
Com as novas gerações e mudanças de valores da sociedade, a hipersexualização dos anos 2000-2010 se tornaram mal vistos e o fetiche foi um pouco deixado de lado – apesar de nunca deixar de fazer suas pontuais aparições.
Mas, de uns anos para cá, vivemos uma nova onda do Fetichismo na moda. Novos criativos, bem como celebridades e algumas marcas mais tradicionais tem resgatado o fetiche, o BDSM, muito como uma resposta ao trauma coletivo do isolamento provocado pela pandemia e esperado hedonismo pós-vacina.
Para o Outono-Inverno 18, a Moschino trouxe uma coleção totalmente inspirada no estilo Dominatrix, com direito a muitas máscaras e látex. Richard Quinn, um dos mais proeminentes nomes da nova geração, também bebe muito dessa fonte, inclusive em sua coleção mais recente, com Violet Chacki em um figurino fetichista, trazendo outro modelo em uma coleira.
Durante a divulgação do álbum DONDA, de Kanye West, no ano passado, Kim Kardashian apareceu com vários looks Balenciaga que cobriam seu rosto, incluindo um todo feito de couro, e sua icônica aparição no MET Gala, completamente coberta. Evan Mock também foi ao MET Gala com uma máscara bastante fetichista assinada pelo designer nova-iorquino Thom Browne. Não é novidade nenhuma que Rick Owens se inspira constantemente no universo fetichista e em sua coleção de Inverno 22 Masculina, lia-se Urinal em uma das peças desfiladas, em uma possível referência à prática fetichista de Golden Shower.
Interpretações menos literais sobre o BDSM também tem furado a bolha e se popularizado na moda. São exemplos como os harness utilizados como uma terceira peça de ternos e roupas sociais (uso muito popularizado por Virgil Abloh na Louis Vuitton logo em seu primeiro desfile), ou mesmo os macacões e looks completos de látex, bastante usados por Kim Kardashian e tendo o modelo da Balmain como exemplo.
As próprias luvas, que há algumas temporadas tem figurado no topo das tendências, podem ser interpretadas como uma influência do fetichismo sobre a moda, principalmente as pretas e de látex, bastante usadas para práticas BDSM e hardcore, principalmente dentro da comunidade gay.
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No Brasil, novos criativos LGBTQIA+ têm resgatado o fetiche como formas de lutar por uma maior liberdade sexual, sob a onda de conservadorismo que tomou o país nos últimos anos. “Toda a ousadia que vem da sociedade, muitas vezes é uma resposta ao conservadorismo que começa a se instaurar” conta Peu Andrade, fundador da marca de festishwear Boldstrap, criada em 2016. “Quando criei a Boldstrap eu tive o cuidado de tirar o fetiche desse lugar ‘obscuro’, de ser algo sempre entre quatro paredes”.
A marca de Peu Andrade, veterana da Casa de Criadores, estreou na última temporada da SPFW, trazendo o fetichismo para uma das principais passarelas do Brasil e da América Latina.
Por sua vez, a mineira Cacete Company também teve um papel importante para a moda queer nos últimos anos, sendo uma das primeiras marcas a produzir abertamente itens fetichistas para a população LGBTQIA+, além de trazer grande diversidade de modelos em seu casting.
“Na verdade achamos que o fetiche já estava no ar há algum tempo, um pouco antes da pandemia, fizemos uma estampa de Golden Shower em 2018” conta Raphael Ribeiro, fundador da Cacete “Mas neste momento em que a pandemia deu uma “regulada” por conta da vacina, as pessoas estão retomando suas atividades e ainda mais afim de sentirem mais contato no pêlo (sic), já que estavam cansadas do virtual, em que ficaram presas por tanto tempo.” continua.
A nível mundial, essa nova onda do fetichismo de forma tão aberta e tão falada, vem como um combate ao conservadorismo no mundo todo, muito catapultado pela libertação sexual da comunidade queer e festas de sexo (no Brasil, são nomes como a Festa Dando, KEVIN e Horny). Existe uma abertura maior para se falar de fetiche hoje, ele não ocupa mais o lugar obscuro, de algo não-falado e usado na moda de forma apenas estética. Mas uma coisa é certa: para se aproveitar da estética fetichista, é importante ter consciência do cunho de libertação sexual e da importância desse movimento principalmente para a comunidade LGBTQIA+ e para as mulheres.