Por Carolina Vasone
Olhar para a frente sempre foi a especialidade de Erika Palomino. Há 27 anos, quando começou a carreira na “Folha de S.Paulo”, ela já cavava espaço no futuro ao escrever sobre as novidades da música eletrônica na coluna “Noite Ilustrada”. Quando os desfiles ainda aconteciam dentro das boates, enxergou na escuridão da pista de dança e no corpo de uma drag queen o talento de Alexandre Herchcovitch. E seguiu se estabelecendo como importante crítica de moda para, depois de 17 anos na Folha, migrar para o promissor e desconhecido universo da internet. O projeto incluía um site, uma revista conceitual (“Key”) e um espaço de eventos culturais em parceria com grandes marcas. Um modelo de negócios tão atual quanto criticado à época. Um dos preços a ser pago quando se tem espírito vanguardista.
“Tenho obsessão pelo novo, quero fazer algo diferente. Para fazer mais do mesmo, não tenho vontade.” A frase, dita de várias maneiras ao longo de duas horas de conversa no apartamento de Erika, perto da Avenida Paulista, revela muito de sua personalidade e explica bastante sua trajetória, incluindo a saída do último projeto, a direção criativa da edição brasileira da revista “L’Officiel”.
A seguir, a jornalista abre o jogo – de maneira clara e sem rodeios – sobre o que pensa da crítica e do jornalismo de moda atual, do mercado editorial e dos jovens estilistas brasileiros.
Por que você saiu da “L’Officiel”?
Acredito em ciclos, foram três anos. Como escorpiana, sou bem ciclotímica. Nesses últimos tempos, estava com muitas atribuições: além das dez edições por ano da “L’Officiel” feminina, tinha a revista masculina, a de viagem, a revista do [hotel] Unique. Cuidava de tudo como diretora de redação, publisher, pensando no produto inteiro, não só na pauta, mas na parte comercial. O projeto foi andando para outro lado e chegou uma hora em que ficou incompatível, tanto do que eu queria quanto do que eles queriam.
Como você vê o mercado editorial hoje?
Vejo com um pouco de tristeza o que está acontecendo no mercado editorial brasileiro. Não só porque as revistas estão muito burocratizadas, mas porque às vezes você vê uma revista fazendo uma capa diferente, ousando, correndo o risco de errar, e todas as pessoas do mercado falam “que uó, que capa feia, que fonte é essa?”. Gente, pelo menos estão tentando, tem alguém tentando fazer algo diferente numa estrutura que já está estabelecida. Eu prefiro correr riscos, pessoas que correm riscos. Acho bacana. E outra coisa também é essa falta de grana generalizada e que aí fica todo mundo se matando, tem as marcas internacionais que anunciam, mas a marcas nacionais não têm verba para anunciar, as que têm verba não são as mais bacanas. Então, esse é um momento bem ruim para o mercado editorial, e não era esse o momento quando eu entrei, há três anos. Há essa onda de caretice e conservadorismo que acaba contaminando as pessoas que são criativas. Hoje, o mercado brasileiro não está preparado para produtos diferentes, produtos incríveis. Não tem um tipo de leitor que absorva isso.
Ao que você credita isso? Será por causa da internet, que mudou o jeito como se comunica a moda, e aí as revistas se enfraqueceram? De onde vem a caretice do mercado atual?
Tem um pouco de para quem você está falando, tem essa questão da expectativa dessas pessoas em relação ao produto revista. Tem os custos, é muito caro, tem um processo gráfico industrial que eleva os custos da produção da revista lá para cima.
Mas isso sempre teve, né? As revistas sempre custaram caro e os leitores sempre estiveram lá…
Esse quadro. Do outro lado você tem um consumo de moda e de informação de moda que circula no seu telefone, não é nem na internet, no computador, que é muito rápido: é quase como se fosse o fast fashion da informação. E é aquele processo de “instagramização” do mundo e que, na moda, funcionou muito bem. É um veículo muito adequado para a moda: é rápido, de consumo instantâneo. Lida com algo muito presente na moda, que é o ego: com quem você está, onde está, o que está vestindo e se você passou férias num lugar mais legal do que os seus followers ou amigos. E você consome na velocidade de um scroll, com esse nível de superficialidade. Então, a moda, que antes era o “império do efêmero”, como disse o Gilles Lipovetsky [no livro homônimo], passou a ser o “império do superficial”. A efemeridade não é o problema da moda, porque moda muda o tempo inteiro, mas essa coisa da superfície é que me preocupa um pouco. Hoje em dia as marcas, os estilistas, têm que criar eventos que possam ser postados.
Dentro desse cenário, ainda há espaço para a crítica de moda?
Cada vez que você abre o Instagram, a crítica de moda se torna menos relevante. As resenhas e os textos publicados por veículos independentes, como os jornais, por exemplo, ou mesmo sites, perderam importância diante de meninas de sociedade que têm dinheiro para comprar tudo ou ganham e são pagas para vestir aquilo. Aí, é um festival de look do dia, de “olha minha sandalinha #nãoseioquê que estou usando hoje, gente”. E você olha o número de gente que segue essas pessoas, é gigantesco. Eu acho essa coisa do look do dia péssima, não sei. Tem essa “bloguerização” da moda. Gente, a pessoa vai lá, produz cinco looks, chama um fotógrafo profissional que faz fotos dela fingindo que está atravessando a rua, ela publica, e todo mundo diz: “Ai, que lindo, fulano, adorei!”. Fica tão pueril, infantil, adolescente, que eu acho uma loucura. E é uma mudança dos tempos. Eu sigo algumas blogueiras. Depois de um tempo, eu paro, porque canso. Tem algumas com quem eu simpatizo mais, outras menos. Acho que vão ficar as melhores, as mais legais.
Quem mais você gosta de ler?
Moda é muito “janela”, você precisa ter visto coisas e estudado coisas, ter ficado ali com o cotovelo (apoiado na janela), nem que seja de longe, mas precisa ter observado muito para poder emitir uma opinião a ser considerada. Em termos de jornalismo de moda, acho que você tem informação trabalhada de uma maneira bem bacana em veículos como o Business of Fashion, que é um site excelente, e “WWD”, dos quais a indústria se alimenta bastante. Existem esses sites que trazem ideias mais frescas, tipo o Nowness. E leio muito o jornal “The New York Times”, que informa você sobre tudo, acho impressionante o trabalho deles.
O jornalismo de moda está entre os seus planos de 2015?
Olha, não quer dizer que eu nunca mais volte para uma redação, mas neste ano não volto. Eu não faço só o que eu quero, mas me permito não fazer o que não quero. Em 2015, a Melissa faz 35 anos. Então, tem muita coisa na marca acontecendo e estou cuidando desses grandes projetos. Sou consultora da grife há 14 anos, faço desde as viagens internacionais do mood macro até propor os temas das coleções, parcerias com estilistas e artistas. Digo que sou uma palpiteira profissional. Tenho vontade de fazer um livro novo, mas isso só para depois de setembro, porque até lá estou ocupada com a Melissa. Até uma revista eu tenho vontade de lançar. Com algumas pessoas com quem trabalhei foi muito legal, e tenho vontade de trabalhar de novo, numa estrutura em que esse conceito caiba.
Você descobriu o Herchcovitch num tempo em que não tinha assessoria, Instagram, Facebook. Você acha que é possível descobrir um Herchcovitch hoje?
Só se houver mais investimento de tempo. As redações funcionam muito no botão de checar se entrou algum e-mail. Acho um grande erro o jornalismo de release. Eu leio release, presto atenção em release, mas nem sempre sua grande pauta vai sair de um refresh da caixa de e-mail. As pessoas que empregam os jornalistas querem ficar olhando para a cara do jornalista na redação. Se a pessoa não está ali sentada parece que não está trabalhando. Lugar de jornalista é na rua. Não quero ver a cara da pessoa, se não confio nela o suficiente para achar que ela pode não estar trabalhando, é porque não serve para trabalhar comigo. Quero a pessoa indo a festas, a lugares que eu não vou, onde não estou. Acredito num tipo de informação que flua, que você chegue para mim e diga: “Nossa, você não vai acreditar, vi um filme neste fim de semana x, y, z”. Aí, posso me interessar, ver o filme ou ficar com aquela informação e transformá-la em outra coisa. Hoje, não temos mais esse tempo. Outra coisa que acho que é mais dramática do que a própria situação do jornalismo de moda é o excesso de evento, de abertura de loja, de almoço de relacionamento que você tem que fazer, de cafezinho que você tem que tomar. É diferente de você andar, dar um rolê e descobrir algo novo. Se é assim que você vai descobrir uma nova coisa? Talvez sim, talvez não. Mas do mesmo jeito que estou indo, o veículo concorrente também. Não dá para ir a todos esses eventos. Isso está matando o jornalismo de moda, porque os jornalistas precisam trabalhar!
Assim como para a comunicação de moda, os tempos para a criação de moda são outros. Com essa exigência pela velocidade de produção de coleções, dá para ser criativo, dá para ser inovador?
Dá para fazer coisas legais a cada momento. Se dá para revolucionar o mundo a cada temporada? Não. A cada coleção Cruise? Não. A cada pré-coleção? Não. Mas dá para construir uma história dentro disso, sim. O preço que se paga é muito alto, é muito penoso, a exigência é extrema, interna e externamente, e a gente tem todos esses exemplos aí, tanto no Brasil como no mundo. Fazer moda é difícil.
Você foi por muito tempo a pessoa mais influente da moda no Brasil. Você sente falta disso, de dar sua opinião?
Não sinto falta de nada, não tenho nostalgia, as pessoas ficam: “Ah, puxa, sinto tanta falta da sua coluna, era tão legal, né?”. É. “Nossa, o seu site era o máximo, tão legal, né?” É. “A Key, o que você fazia era tão incrível!” É, era incrível. “Aquela festa, uma vez, que você fez no Rio, foi o máximo!” Sim, foi o máximo. Às vezes me perguntam: “Mas por que você não volta com o site?”. Gente, porque são outros tempos. “Por que não volta com o podcast?” As coisas têm um tempo, existem naquele momento. Também não adianta fazer as coisas antes, porque o projeto da House of Palomino, ele era tão, mas tão moderno, que ele estava antes do tempo.
Isso de estar antes do tempo é muito uma característica da vanguarda. Qual preço você acha que paga por isso?
O preço é você ter um compromisso de fazer coisas que nunca foram feitas. Tenho obsessão pelo novo. Ele me seduz em qualquer ambiente. E acho que é por isso que eu gosto tanto de moda: é o exercício de buscar o novo onde não tem mais de onde aparecer. Para mim, interessa o novo na arquitetura, é por isso que gosto de arte, que comecei a me interessar por música eletrônica: primeiro veio o house, depois o techno, eram fronteiras que estavam sendo desbravadas a todo tempo. Por isso gosto de tecnologia, porque a cada momento aparece um aplicativo mais engraçado e fácil de se comunicar, programas novos, tudo novo. Tendo esse compromisso, gosto de fazer coisas que nunca fiz. Quando quis sair da Folha, as pessoas falaram: “Você é louca, deixar esse posto, esse cargo, você está aí há 17 anos, numa empresa como essa”. Gente, meu ciclo já fechou, eu já fiz tudo o que queria fazer aqui, não tenho mais como crescer horizontalmente, verticalmente. Sentia que precisava fazer outra coisa, não queria me transformar em móveis e utensílios do jornal. Prefiro deixar saudades do que encher o saco.
Houve uma época em que você foi bem observada.
Ah, você estava falando: “As pessoas te criticavam na House”. Eu sempre fui criticada, sempre. Porque também não tem como eu passar despercebida. Qualquer movimento que eu faça, balança a água.
Trechos da entrevista concedida originalmente para a “FFWMAG” 39. Para ler na íntegra, a revista está disponível em bancas e livrarias e também através dos sites FFWSHOP e Livraria Cultura.