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    Paulo Borges fala sobre moda, renúncia fiscal e futuro e chama classe para reflexão e união
    Paulo Borges fala sobre moda, renúncia fiscal e futuro e chama classe para reflexão e união
    POR Redação

    Interior da mostra sobre Carmen Miranda no SPFW, uma das únicas iniciativas de homenagear a artista em seu centenário ©Arquivo SPFW

    Nestes últimos dias recebi mais de uma dezena de solicitações de entrevistas, para falar, dar opinião, aspas, ponto de vista sobre “o assunto do momento”, pelo menos para o mundo da moda.

    Moda é Cultura?

    É Arte?

    Desfiles poderiam se utilizar do instrumento público e federal de renúncia fiscal (lei Rouanet) para o seu financiamento?

    A Ministra da Cultura acertou ou errou?

    A moda pode ou não pode?

    Enfim, muitos pontos, diversas opiniões…

    É claro que eu tenho uma opinião a respeito.

    Porque tenho responsabilidade na crença lapidada nestes mais de 30 anos trabalhando para a Moda Brasileira.

    Resolvi escrever este texto, e publica-lo em nosso portal ffw.com.br, para não correr o risco de ser mal interpretado, editado, “aspado” (se é que pode escrever assim), tirado fora do contexto, o que infelizmente muitas vezes acontece. O texto é longo porque quero abrir o raciocínio para um processo que vem sendo desenvolvido há muito tempo e não apenas de forma pontual. Para quem tem interesse sobre o assunto, dedique um pouco do seu tempo a uma leitura que pode ser esclarecedora em muitos pontos.

    E também porque, ao escrever, posso discorrer sobre os muitos anos de trabalho sério, duro, inovador, de muito amor e dedicação, numa construção coletiva e constante.

    Antes de qualquer coisa, gostaria de ressaltar que nestes quase 20 anos de SPFW, nunca utilizamos recursos da Lei Rouanet para a sua realização. Tudo nasceu e se desenvolveu através da iniciativa privada.

    Neste período, posso afirmar que foram investidos para o desenvolvimento desta plataforma da moda brasileira nada menos que R$ 600 milhões, em média e em valores atualizados.

    Desde seu início, o SPFW promoveu, apoiou e incentivou vários projetos ligados à moda ou não, para serem expostos durante a semana de desfiles. Projetos estes que fazem parte da nossa crença na construção de uma cultura de moda para o país. Em apenas três deles, em momentos diferentes, experimentamos abrir ao público, por um período de três semanas após o evento, com acesso geral e gratuito. Dois destes projetos foram realizados 100% com recursos privados, e apenas um deles contou com recursos incentivados.

    Projeto “Olhares do Brasil”, com cenografia assinada por Muti Randolph na edição de Inverno 2005 do SPFW ©Arquivo SPFW

    Exposição “Universo Criativo – Projeto Brasil 02”, no SPFW Inverno 2012 ©Arquivo SPFW

    A mostra “Pretty Much Everything”, da dupla de fotógrafos Inez van Lamsweerde e Vinoodh Matadin, aberta ao público em junho de 2011 ©Arquivo SPFW

    De forma inédita no mundo, o SPFW nasceu oferecendo ao mercado um ambiente e um espaço com a maior e melhor infraestrutura para se realizar os desfiles. Desde o primeiro dia (e volto lá para 1996), sabemos da nossa capacidade e necessidade de transformar e desenvolver um setor que andava às beiras e às soltas, sem datas de lançamentos coordenadas, sem ambiente ou mesmo iniciativas coletivas e assertivas para esse necessário desenvolvimento e alinhamento, e assim iniciamos uma trajetória hoje mundialmente conhecida e reconhecida.

    Diferentemente de Paris, Milão e Nova York, não cobramos das grifes e dos estilistas para compartilharem esta infraestrutura, além de trazer jornalistas e compradores para os lançamentos, com um único propósito de fomentar o desenvolvimento de todo o mercado e de toda a cadeia produtiva, conectando todos os players existentes e possíveis, do começo ao fim desta cadeia, do tecido ao varejo, passando pela comunicação e educação.

    Sabendo do valor e do potencial existente em nosso mercado, em nosso país, da nossa vocação para a costura, para o têxtil, para a criatividade, e assim rabiscando 30 anos futuros, ousamos plantar, semear, disseminar e difundir todos os valores, atores e processos desta cadeia de produção criativa, sem nunca parar para reclamar projetos de governo (ou, na maioria das vezes, da ausência deles) que pudessem fomentar e desenvolver uma indústria tão importante para o país. Não só pela capacidade de gerar riquezas básicas como empregos e impostos, mas para, além disso, gerar transformação, cultura, autoestima, imagem positiva, etc.

    O Brasil, infelizmente, ainda é uma sociedade altamente preconceituosa, presa a estereótipos que não valem mais nada, e que não vê o mundo que se transforma ao seu redor. Aqui, na grande maioria das situações, as pessoas só conseguem expressar as opiniões de forma horizontal ou vertical, por isso sempre vemos gráficos para explicar qualquer coisa ou situação, seja na TV, nos jornais ou nas revistas.

    Daí a grande dificuldade de ver e entender muitos movimentos que acontecem, principalmente na moda. O ponto é que somos uma sociedade contemporânea transversal, e o mundo é transversal. E assim seguirá. Não podemos mais dizer “Independência ou Morte”, e sim INTERDEPENDÊNCIA ou Morte! Transversalmente dizendo.

    O ponto principal é somar e não dividir. Unir e não separar. Ampliar todas as possibilidades disponíveis e construir novas.

    Paulo Borges e Dilma Rousseff no Palácio do Planalto em janeiro de 2010 ©Arquivo SPFW

    Temos grandes exemplos no mundo de como a moda é utilizada como plataforma de desenvolvimento para todo um país, fomentando diversas áreas importantes, como turismo, arquitetura, gastronomia, design, tecnologia, e acima de tudo, tangibilizando um pool de atividades importantes para o país.  É inegável a transformação do Japão, criando desejo de identidade cultural e de produtos, associados ao seu projeto de globalizar seu design de moda como parte de seu processo cultural. Assim como a Bélgica, a Coreia do Sul e a Inglaterra. E digo de antemão: aguardem a China. Não quero reclamar mais da situação solitária em prol do desenvolvimento da indústria da moda para o Brasil, principalmente quando olhamos para países como Inglaterra, que cria várias formas de fomento aos processos criativos, e sempre de maneira colaborativa.

    A moda como um todo já viveu (e ainda vive) momentos de muito preconceito em relação a seus processos, valores e demandas.

    Modelos, por exemplo, eram vistas como pessoas de profissão duvidosa. Estilistas, estes nem existiam na cabeça das pessoas. E jornalistas de moda então? Espaços para informar a notícia de moda? Somente nos poucos cadernos femininos, ao lado de receitas de bolo. Outra dezena de profissões dentro dessa cadeia criativa nem existia de maneira formal e com projeto de desenvolvimento profissional, como maquiadores, cabeleireiros, stylists e produtores, entre outros.

    Nestes quase 20 anos fizemos uma revolução neste país. Uma grande revolução, posso afirmar. De Norte a Sul. Demos luz a um ambiente produtivo, transformador, educador, inovador, gerador de grandes riquezas aos cofres públicos.

    Em 1996 não existia mais do que três cursos de nível superior no Brasil voltados ao ensino da moda e dos negócios da moda, e hoje passam de 150 espalhados por todo o país, de ponta a ponta.

    A moda virou tema de novela em vários momentos, refletido no hábito cultural do brasileiro ligado à teledramaturgia, provando a força de todo o sistema e o valor e o interesse de todos pelo assunto.

    Sempre defendi que Moda fosse reconhecida e tratada como Cultura neste país sim, porque de fato ela o é. Não no conceito de cultura que muitos ainda insistem em aprisioná-la, mas como manifestação e expressão artística, e retrato estético e histórico de períodos de uma sociedade.

    O então ministro da Cultura Gilberto Gil foi o primeiro a enxergar essa transversalidade e reconhecer e incluir Moda como Cultura, fazendo questão de declarar isto no SPFW, integrando a Moda ao Plano Nacional de Políticas Culturais (do qual fui conselheiro por dois anos, juntamente com Ronaldo Fraga), e criando o primeiro colegiado de moda dentro do MinC.

    Coletiva de imprensa do SPFW com Gilberto Gil, então ministro da Cultura, e Paulo Borges, janeiro de 2008 ©Arquivo SPFW

    Muitos já gritaram naquele momento. Moda na Cultura? Que absurdo!

    Todos nós queremos um país moderno, novo, brilhante, solto das velhas amarras colonizadoras, que ainda insistem em nos colocar única e exclusivamente ao lado de uma bola de futebol, numa roda de samba, e de preferência com um copo de caipirinha na mão.

    Somos muito mais do que isso.

    Somos para além disso. E temos o dever de redesenhar este futuro como nação, como povo. É evidente que o Brasil carece com urgência de mudanças gerais. Estamos vendo e vivendo isto todos os dias nas ruas. Falta plano para quase tudo.

    Não é papel do Estado financiar, mas é dever do Estado fomentar, investir, criar ambiente, semear, instigar. Cuidar, antes de mais nada.

    Para ser mais exato, a cada edição do SPFW, período de pré-evento, evento, e showrooms, que pode chegar a um mês de movimentação na cidade de São Paulo, a Moda fomenta e atrai consumo para todas as áreas econômicas da cidade. Nos restaurantes, hotéis, teatros, museus, serviços gerais, comércio, direcionando para os cofres púbicos mais de R$ 30 milhões em impostos. Enriquece a cidade, dá forma e vida a sua vocação.

    Isto é Moda. Isto é SPFW, e por isso tão importante para cidade, para o estado e para o país.

    Dados do órgão SPTuris mostram como a moda movimenta a cidade 

    Muito já se conquistou, principalmente no plano municipal e estadual. A cidade de São Paulo já trata há muitos anos o SPFW como um patrimônio para seu desenvolvimento e economia, como de fato é. E as relações são assim, uma via de mão dupla. Sempre.

    Infelizmente, no campo federal existe um abismo, um longo corredor para ser conquistado e desbravado. Por isso dou meus parabéns à ministra Marta, pela sua coragem no gesto provocado. Em sua crença no desenvolvimento e na mudança de paradigma. É claro que ela sabia o que estava fazendo, no que estava se metendo. Que seria questionada. Confrontada. Mas pessoas com visão não temem a guerra.

    O fato é que ainda não temos um plano de desenvolvimento para a moda no país. Plano de visão, de longo prazo, transversal, que conecte todos os dispositivos de Estado, e que deveria estar muito além do Ministério da Cultura. Moda no Brasil começa, na verdade, pela agricultura, com as fibras naturais, o algodão, que já poderia ser um dos melhores do mundo, mas não é.

    Cesar Callegari, Secretário da Educação, Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, Paulo Borges e Ronaldo Fraga, em desfile no Ceu Butantã em março 2013 ©Arquivo SPFW

    O governador Geraldo Alckmin e dona Lu, com Paulo Borges no SPFW, em março deste ano ©FFW/Ricardo Toscani

    Marta Suplicy, então prefeita de São Paulo, e Paulo Borges, no SPFW, em junho de 2004 ©Arquivo FFW

    José Serra no desfile do Afroreggae, no SPFW em 2007  ©Arquivo SPFW

    Leão Seva, Graça Cabral e o ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab, na edição de Verão 2010 do SPFW ©Arquivo SPFW

    Paulo Skaf, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), com Paulo Borges ©Arquivo SPFW

    Luiz Barretto, presidente do Sebrae, no SPFW, em janeiro de 2012 na ocasião da assinatura do convênio entre Sebrae e Inmod ©Arquivo SPFW

    Passa pelo desenvolvimento, pela pesquisa e inovação, por áreas econômicas e tributárias, pelos setores de educação, formação técnica, por todas as agências de fomento, para depois chegar à Cultura, onde todo o processo se completa para apresentar o Brasil ao mundo, em mais uma rica e ampla faceta do que somos. Ou mesmo do que deveríamos ser. Estamos subutilizando a oportunidade de construir um país em que todas as manifestações e linguagens se completam e se somam. A moda, nesses últimos 20 anos, principalmente através do SPFW, mas não unicamente, tem demonstrado e apresentado conexões possíveis e inovadoras para a construção desse novo Brasil.

    O fato de que três grandes estilistas brasileiros possam captar recursos de renúncia fiscal para apresentar o final de todo um processo criativo, a meu ver é 100% legítimo. Neste momento, com algumas necessidades de ajustes, natural em toda construção e amadurecimento, especialmente em um início de processo.

    Vamos por partes. Qual a diferença entre um desfile e uma peça de teatro do ponto de vista da forma e dos recursos? Ambos geram empregos e vendem seu produto. O produto da moda é a roupa, assim como o do teatro é a peça, o da música é o show e o do cinema é o filme. Todos, sem exceção, vendem um produto, dividem os lucros e partem para outro projeto.

    Será que sem o auxílio das leis de incentivo, o cinema brasileiro conseguiria andar? Somente com o resultado da bilheteria? Provavelmente não. Talvez nem conseguisse sair da etapa de roteiro. Isto não é uma crítica, apenas uma observação, um paralelismo.

    Somos uma sociedade capitalista, o mundo é, e assim andam todos os processos, em torno do seu desenvolvimento e sustentabilidade econômica, social, e cultural.  Por que fomentar apenas uma atividade?

    Por que uns sim, outros não?!

    Por que isso ou aquilo?

    A questão é somar, conectar.

    É mais. Muito mais. E para mais pessoas e ideias, em todas as áreas de expressão e desenvolvimento. Um projeto mais amplo, coletivo, em benefício da preservação do todo, principalmente por ser um modelo inicial de possibilidades novas.

    Como um processo que se estabelece de forma irreversível. Que conquiste mais espaços e mais parceiros. Mais atenção e mais cuidados. Mais inteligência e mais, muito mais. Para todos. Para o Brasil.

    Se hoje, como Moda, ainda sofremos todo tipo de preconceito, é porque como agentes e atores desse processo, todos nós, da moda, ainda não soubemos apresentar uma fala uníssona, uma unidade de pensamento e de projeto de longo prazo que possa, de uma vez, transpor as barreiras ainda existentes para a moda brasileira. Aproveito para chamar todos esses atores a refletir para que possamos ter essa voz vibrante e importante, do tamanho que é o seu serviço ao país, e sermos ouvidos por todos os agentes de estado necessários para essa transformação.

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