Muita gente pode achar que fazer a trilha sonora de um desfile requer as mesmas habilidades de tocar numa festa, afinal, o objetivo é animar o ambiente, ainda que, no caso da apresentação de uma coleção, por apenas 15 minutos, certo? Errado. Ser DJ de apresentações de coleções, seja em São Paulo, Nova York, Paris, Londres ou Milão, é um trabalho muito específico, que exige um outro tipo de técnica, pesquisa e conhecimento. Na primeira da série do FFW de textos sobre profissões da moda, vamos destrinchar o trabalho deste que é o responsável pela voz – seja ela instrumental, ou até um ruído, como de chuva, passos, chegando ao “barulho do silêncio total” pedido recentemente por Nicolas Ghesquière – de um desfile.
O francês Michel Gaubert é o exemplo mais emblemático desta carreira. Aos 55 anos, ele é o responsável por todas as trilhas da Chanel. “Confio no seu julgamento”, foi o elogio mais marcante que Gaubert diz já ter recebido, vindo de ninguém menos que o supercrítico Karl Lagerfeld, com quem trabalha há mais de 20 anos. O DJ é, na verdade, mais do que um DJ: sua função é a de um diretor musical, e não só da maison de Coco, mas de marcas como Fendi, Céline, Dior, Louis Vuitton e Michael Kors. Ele chega a sonorizar cerca de 25 desfiles por estação de prêt-à-porter em cada uma das quatro principais capitais fashion internacionais, sem contar alta-costura e desfiles especiais como os de Resort da Louis Vuitton na Califórnia ou o da Chanel na Coréia do Sul, ambos este ano. No desfile para o Verão 2011 da Chanel, dirigiu 80 músicos de uma orquestra. No show da Fendi na muralha da China, em 2007, repensou toda a trilha ao chegar ao lugar.
Gaubert ainda cria compilações musicais especiais para a Colette e tem 152 mil seguidores no Instagram, onde fala menos de música e mais do universo pop das celebridades, de maneira divertida e irônica.
Como virar um DJ de desfiles
Geralmente, um DJ de desfiles foi antes um DJ relevante em clubes, festas, na cena musical. No caso de Gaubert, ele começou a carreira em 1978, como comprador de discos de uma loja de vinis independente em Paris chamada Champs Disques, frequentada, entre outros aficionados por música, por Karl Lagerfeld. A paixão pelo tema e o conhecimento adquirido em viagens pela Bélgica, Estados Unidos e Londres para comprar discos o levaram ao início de sua carreira de DJ, quando virou residente da discoteca (era esse o nome na época) Le Palace, uma espécie de Studio 54 de Paris no fim dos anos 70, começo dos 80, frequentada por gente da moda como Thierry Mugler e Kenzo. Das pistas para as passarelas, foi um pulo, e o DJ passou então, nos anos 80, a criar trilhas para designers independentes, até que, nos 90, começou a assinar desfiles de grandes marcas.
Nem todo DJ de desfile, porém, precisa ter sido um DJ de festas e clubes antes. Max Blum, um dos principais nomes das pick-ups de salas de desfiles brasileiras, entrou em contato com a música não por meio de discos, mas de instrumentos musicais: aos 5 anos, estudou piano e violão. Começou sua carreira trabalhando com bandas, depois como estagiário em estúdios de trilha para propaganda até tornar-se produtor musical. Em 2004, fez sua primeira trilha sonora para um desfile, o da Cavalera, incentivado pelo amigo e stylist Daniel Ueda. “Fiz um mashup e a Paris Hilton desfilou. Lembro que o desfile aconteceu pouco antes desse gênero bombar, então acho que isso acabou me ajudando a trabalhar mais”, contou em uma entrevista. Hoje ele é o DJ que mais assina trilhas do SPFW, favorito de Alexandre Herchcovitch e com clientes como Animale, Lilly Sarti, Giuliana Romanno, entre outros.
Processo de criação
O tema da coleção é sempre uma referência essencial, mas não necessariamente o ponto de partida da trilha. O estilista marca uma reunião com o DJ para dar um resumo do que espera da música do desfile. Aí, o designer pode desde mostrar uma música que tem na cabeça, um moodboard de inspirações, a própria coleção, até “algo mais abstrato, como uma escultura”, lembra Frédéric Sanchez, que assina trilhas da Prada. “Checo até a altura do salto alto que será desfilado”, conta Gaubert. Essa conversa entre designer e DJ pode acontecer de meses até dois dias antes do desfile, dependendo da marca, diz Gaubert.
A partir daí, as ideias serão trabalhadas e mostradas para o estilista, que pode aprovar de primeira ou pedir adaptações. A trilha pode ser feita de várias composições ou ter uma única música, o que não diminui o trabalho do DJ, já que, como Max Blum ressalta, ela não está no ritmo e na ordem certa para virar uma sonorização do desfile, por isso precisa ser rearranjada, com mudanças de trechos de lugar, por exemplo. Depois, a trilha é testada na sala de desfiles, para ver se tudo funciona direito.
Ao contrário de uma apresentação de um DJ residente ou convidado de uma festa, onde a protagonista é a música, num desfile, todos os profissionais, nacionais e internacionais, deixam claro que a estrela é a coleção. “Você tem que fazer a trilha pensando sempre que a roupa é mais importante. Quando entrar o primeiro look, aquilo tem que ser muito maior do que qualquer coisa que estiver tocando”, lembra Max Blum. Frédéric Sanchez concorda. “Quero que, no final, as pessoas digam que o desfile foi incrível. Não gosto quando dizem que a música estava incrível. Isso para mim significa que não fiz meu trabalho direito. É primordial que tudo seja percebido como uma coisa só. Se a música foi importante demais no show, não é um bom sinal.”
Engana-se também quem acha que trilha boa é aquela com ritmo para as modelos andarem na passarela. “Você sempre ouve gente achando que uma música vai funcionar porque as modelos conseguem andar ao som dela. Mas quando alguém caminha na rua, não precisa de uma batida musical, certo? O que o público capta da música é o mais importante, não o ritmo ou a batida”, afirma Gaubert.
Pesquisa musical
“Ouço um monte de coisas, novas e antigas, e ouço o que não gosto também, porque é importante saber o que está acontecendo de maneira geral na música. No caso dos estilistas, às vezes eles não gostam de certos materiais ou cores, mas sabem que se os usam no momento certo, vai funcionar”, diz Gaubert, que tem uma coleção de cerca de 80 mil discos de vinil e mais 400 mil músicas em arquivo digital.
Max Blum e Zé Pedro – outro DJ brasileiro que assina muitos desfiles de moda importantes – também concordam que gosto pessoal não em nada a ver com criar uma boa sonorização de um desfile. “A trilha tem que passar uma mensagem”, acredita Zé Pedro. Como essa mensagem é a da coleção, e não a do estilo musical do DJ, o que importa também não é o que é mais novo, mas o que vai resumir o espírito da coleção, executado de maneira talentosa e surpreendente. Basta dizer que Sanchez já tocou Britney Spears na Prada e Gaubert, Jay-Z na Chanel. Isso, não quer dizer, no entanto, que eles se prendam a fórmulas pop ou a sucessos fáceis, muito pelo contrário: Gaubert vive apresentando artistas novos nos desfiles da Chanel e já fez até uma trilha superconceitual inspirada no “barulho do silêncio”, a pedido de Nicolas Ghesquière, para o último show da Louis Vuitton (“Trabalhei com um cara de Los Angeles, chamado Leopold Ross, e ficou superinteligente”). Mas não têm preconceitos.
Os estilistas e eles
A relação dos DJs com os estilistas é normalmente intensa e até pessoal. Karl Lagerfeld já disse que Michel Gaubert é quem sempre lhe apresenta os artistas mais bacanas do momento, que acabam invariavelmente entrando nas trilhas sonoras dos desfiles (quando tem a ver, claro). Foi o caso de Hercules and Love Affair, tocado no desfile para o Inverno 2008 da maison, no ano do lançamento do primeiro disco do grupo e de seu sucesso “Blind”. “Com o Karl, o processo de trabalho é orgânico. A gente troca ideias. No desfile do aeroporto, por exemplo (o mais recente, para o Verão 2016), não queríamos nenhum som de aeroporto. Nenhum daqueles anúncios, nada. Queríamos um aeroporto mais ‘friendly'”, conta.
“A música consegue te transportar da sala fria, daquele ambiente duro, para um outro lugar. É ela que, com a roupa, amarra tudo. Quando acaba o desfile e acaba a música, você volta para a Terra”, acredita Eduardo Pombal, diretor criativo da brasileira Tufi Duek. “Se as roupas são a carne do desfile, a música é a alma, que as torna vivas”, resume Prabal Gurung.