Por Guilherme Meneghetti
Desperdício zero e produção local e sem terceirização. Esse é o foco da designer curitibana Heloísa Strobel, fundadora da Reptilia.
Os princípios de sustentabilidade sempre fizeram parte de seu modus operandi. Formada em arquitetura, Helô trabalhou por muitos anos com o arquiteto Jaime Lerner, conhecido por, entre outras coisas, o aspecto sustentável de seu trabalho.
A Reptilia surgiu em 2013 num concurso que recebe subsídio governamental. De cara, apresentou a primeira coleção comercial numa feira em Paris.
Fora do eixo Rio-São Paulo, Heloisa faz questão de trabalhar a produção local e tem sua cidade como grande fonte de inspiração. Sua roupa não é pensada para ser simplesmente bonita e usada, mas também ter uma função prática. Ela foi uma das convidadas a representar o Brasil na semana de moda da África do Sul, que aconteceu recentemente.
Pouco antes de viajar, a estilista conversou com o FFW sobre tecnologia têxtil, sustentabilidade e como é trabalhar fora do eixo rio-SP.
Você se formou em moda?
Não, arquitetura. Trabalhei muitos anos como arquiteta assistente do Jaime Lerner, um arquiteto e urbanista muito famoso aqui em Curitiba e no mundo todo. Ao longo desse período, percebi que eu tinha momentos ociosos que poderiam ser usados de uma forma melhor. Foi quando decidi fazer um curso técnico de Design de Moda, que sempre foi um assunto pelo qual me interessei, pra entender melhor como funciona o processo criativo, o mercado, a confecção. A partir da experiência como arquiteta, tive a oportunidade de olhar pra moda pelo viés da sustentabilidade, pois o Jaime é conhecido pelo seu trabalho que segue princípios de sustentabilidade. A moda é uma das cadeias produtivas mais fragmentadas do mundo. Então através desse olhar da arquitetura, eu pude perceber isso e fui mais ou menos definindo meu caminho.
No curso de moda, meus professores sempre me incentivaram a mandar meus desenhos e criações para concursos. Aos poucos, fui me destacando. Em 2011, por exemplo, fui uma das finalistas do Paraná Criando Moda, um concurso nacional. Fiquei em segundo lugar. Comecei ali minha primeira coleção, aproveitando resíduos da indústria, já pensando no viés da sustentabilidade e em ligar a criatividade com os processos.
Como e quando surgiu a Reptilia?
Em 2013 rolou o start na Reptilia, quando ganhei o BtoBe (Brazilians to Be), um concurso que era da Texbrasil e Abit. Foi um divisor de águas pra mim. Eu ganhei na categoria Empreendedor. Ingressei numa incubadora de jovens estilistas, que oferecia cursos e consultoria num processo de profissionalização da marca, e fomos convidados a apresentar nossa primeira coleção comercial em Paris, na feira Who’s Next. A partir daí, comecei a sentir qual seria o meu caminho. A participação na feira trouxe nossos primeiros pedidos internacionais. Isso foi muito bacana pois já começamos a marca sob os padrões gringos. Quando fomos enviar as peças para entrega, todas passaram por uma análise bem criteriosa, pra conferir se as medidas estavam corretas, o material, a apresentação e tudo mais. Foi importante iniciar com esses padrões mais rígidos.
Nessa época, em 2014, a gente trabalhava com serviços terceirizados e percebi que eles não estavam exatamente à altura daquele produto que estávamos oferecendo. Foi uma coleção que trabalhamos com a seda do O Casulo Feliz, que são sedas artesanais, tecidas em tear manual, por isso apresentam comportamentos e características muito próprias. Pensando nisso, percebi que seria muito difícil trabalhar com funcionários terceirizados, que não entendem exatamente a proposta, o conceito e o universo da Reptilia. E aí senti a necessidade de desenvolver a minha equipe, de instruir as pessoas para trabalharem comigo com esse tipo de material e, em 2015, começamos com a produção própria no nosso ateliê, desenvolvendo nossas funcionárias e o modus operandi.
A sustentabilidade é bem importante para você.
Nós temos a política do desperdício zero, do estoque sob demanda, que é um dos principais pilares do slow fashion. Outro ponto é a matéria-prima brasileira certificada e nisso estamos fortalecendo toda uma cadeia.
Também temos pequenas ações dentro do nosso ateliê. Por exemplo, as embalagens são todas de papel reciclado ou reciclável, não utilizamos plástico. Temos alguns cuidados com o manejo dos nossos resíduos. O lixo do escritório vai pra cooperativas de reciclagem. Mas acho que o mais importante é ter uma equipe própria contratada, com carteira assinada, em cima de todos os preceitos éticos do que é o trabalho e do envolvimento dessas pessoas com o trabalho que elas estão fazendo. Eu chamo isso de criação horizontal, uma equipe que está participando o tempo todo do produto, ela está se sentindo parte daquilo – mais do que sustentável, é empoderador e isso é uma das coisas mais gratificantes pra mim.
Por que “Reptilia”?
Vem da ideia de que a roupa é uma forma de trocar de pele, assim como os répteis fazem. E a roupa nada mais é do que isso, uma oportunidade de você trazer o design para o dia a dia mas também trazer essa “troca de pele”, que é uma coisa que só a moda nos proporciona, vestir personagens diferentes a cada dia – acho isso bem legal. E também tem uma música dos Strokes que eu sempre gostei muito e me impulsionou nessa direção. Mas a ideia da troca de pele é mais importante.
Quem são ou quais são suas inspirações?
Busco menos inspiração na moda e mais nas áreas adjacentes. Arquitetura acaba sendo uma super fonte de inspiração; serei sempre uma arquiteta antes de ser estilista. Os modernistas são meus mestres: Lina Bo Bardi, Vilanova Artigas. Na parte mais filosófica da atividade, Jaime Lerner. A fotografia também me inspira muito. A música… Meu marido é músico e também vivo muito nesse universo.
Qual foi o investimento inicial?
Não sei precisar hoje qual foi o meu investimento inicial. Mas sei dizer, e sempre digo pra quem está começando na área, que você precisa ter um aporte financeiro pra ficar, pelo menos, dois anos sem receber nenhum dinheiro. Quando você faz uma peça, ela acaba sendo vendida, muita gente apoia a marca no começo, então a coisa toda, de certa forma, vai sendo “paga”, mas você tem que estar preparado pra não receber e poder pagar suas contas mesmo assim – esse é o maior aporte de todos.
Quem é o seu público-alvo?
São principalmente pessoas ligadas à arte, ao design e a à arquitetura. Podem não ser profissionais da área, mas são apreciadores, carregam um repertório cultural bacana e por isso se identificam com a marca. Não se caracterizam por uma faixa etária, mas principalmente por um estilo, um interesse em comum. Essas pessoas gostam do fato de termos uma confecção e de podermos oferecer peças com autoria, funcionalidade, qualidade, sustentabilidade e beleza.
A gente tem um contato muito próximo com nosso público. Como temos uma “loja-ateliê”, onde funciona ali um ateliê modelo em que todas as peças são criadas e produzidas (hoje não temos nenhum serviço terceirizado, temos nossa própria equipe e fazemos todas as etapas: criação, modelagem, corte e costura de tudo), o legal é que a gente consegue ter um contato entre a equipe toda e o público que frequenta a loja. Ou seja, quem está produzindo, cortando, costurando a peça, também está vendo, conversando com a pessoa que compra. Isso dá uma motivação extra; traz um afeto pra quem está comprando e também um envolvimento pra quem está trabalhando na marca. Uma visita na nossa loja-ateliê é um mergulho, uma imersão nesse universo da criação autoral.
Quantas coleções você faz por ano?
A gente faz duas coleções oficiais, verão e inverno e também fazemos várias mini coleções o ano inteiro. Sempre fazemos peças customizadas com algum tecido que sobra ou usamos retalhos para compor novas peças. E são elas que integram essas mini coleções ao longo do ano.
Que elemento é primordial na criação das peças?
Fazer uma roupa moderna, que seja funcional e para todas as ocasiões. Não é só sobre estética. Elas são bonitas sim, claro, mas são de muita qualidade e têm coisas que vão proporcionar uma experiência agradável o dia todo, sejam os bolsos, as amarrações, formas diferentes de vestir ou até mesmo a praticidade, além de ter um bom toque e caimento.
Uma das peças hit da marca é a Calça C, por exemplo.
Hoje ela é a nossa peça mais vendida. Essa calça tem uma modelagem bastante conhecida que veio de um livro japonês chamado Magic Pattern, que explora um pouco da modelagem tradicional e da alfaiataria japonesa, além de pences e recortes. O que a gente fez foi pegar esse molde e trabalhar ele dentro dos preceitos da Reptilia. Isto é, trouxemos tecidos mais tecnológicos, acrescentamos bolsos, amarração no cós – a ideia era deixar essa peça bastante funcional. E a Calça C é uma das mais vendidas porque é feminina e masculina e também conseguimos atingir uma grade de tamanhos que vai do PP ao XG, o que equivale do 34 ao 48/50, praticamente. Ela é bem democrática, veste bem em diferentes corpos e por isso é tão importante pra gente.
Um dos focos da marca é a pesquisa em tecnologia têxtil. Com que tecidos você prefere trabalhar? São produzidos no Brasil?
A gente tem a pesquisa mais tecnológica, que na verdade não é feita por nós, a gente utiliza e se beneficia do que é feito no Brasil e no mundo, que são as pesquisas feitas pela Rhodia, por exemplo. Usamos muito os tecidos da Santa Constância também, que desenvolve suas próprias pesquisas. É caro utilizar esse material, são bem mais caros do que a média do mercado, porém é visível a qualidade e o benefício para o usuário. Então é caro, mas eu vejo retorno. Eu gosto de apresentar essa peça pra um cliente e ver que ele realmente entende o valor de um tecido tecnológico, que às vezes é um tecido que você vai lavar menos, vai amassar menos, vai pesar menos na mala, vai te dar algum benefício de saúde, como é o caso do Emana, que trabalha a circulação sanguínea e tem proteção UV. As pessoas já estão entendendo isso, assim como estão entendendo o que é a sustentabilidade, e o que ela implica no custo do produto que pode ser um pouquinho mais alto mesmo.
E tem a parte da pesquisa mais orgânica, que é a parte artesanal que a gente trabalha na Reptilia, quando experimentamos novos cortes, novo acabamentos, novos tingimentos nos tecidos, novas maneiras de explorar às vezes tecidos muito tradicionais como a seda, por exemplo. E isso também é um trabalho que tem um custo, mas que eu também vejo que já é bastante valorizado pelo cliente e que muitas vezes nos dá possibilidade de reutilizar materiais de coleções passadas, seja através do tingimento, da manipulação têxtil, e nisso a gente diminui o desperdício, uma das principais motivações que temos hoje. A gente tenta reutilizar todos os retalhos e o que sobra, enviamos para marcas parceiras que só usam retalhos, como por exemplo a H-AL.
A seda é um dos meus preferidos pois possibilita várias manipulações orgânicas e artesanais. Gosto de tingir, testar pigmentos, desfiar, criar veios. Mas na parte tecnológica, os preferidos são as malhas esportivas da Santa Constância, que apresentam benefícios no cuidado, na durabilidade e às vezes até para a saúde. Diferentemente da seda, meu desafio com esses materiais é justamente tirá-los do lugar comum.
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É caro investir em pesquisa têxtil?
Sim. Quando eu vou fazer uma peça com dois tecidos diferentes, um tecnológico e o outro mais comum, a gente vê que a diferença de preço é grande, sim. Mas é uma diferença que a gente trabalha repassando pro consumidor e ele vai receber esse benefício num tecido realmente bem mais funcional.
A gente só usa matéria-prima brasileira e certificada. O que acontece às vezes é que, por exemplo, a Santa Constância compra fios que são importados, mas a tecelagem eles fazem toda aqui no Brasil. Procuramos sempre trabalhar com os ISOs, o 9001 tem que aparecer, simboliza que é um fornecedor mais consciente.
Onde encontramos suas peças?
Na nossa loja-ateliê em Curitiba, que é o principal ponto de venda, onde a gente coloca todos os lançamentos, convida o público e recebe o feedback. Temos também um ponto de venda muito importante em São Paulo, que é a multimarca Casa Diária, ali em Pinheiros. E temos a parte online também.
Não estar no eixo Rio-São Paulo é uma dificuldade?
Traz uma certa dificuldade, sim, na hora de encontrar materiais – aviamentos, por exemplo, aqui em Curitiba temos poucas opções. Mesmo a parte de tecidos, eu tive que fazer essa pesquisa, tive que estendê-la a nível Brasil. Mas a internet ajuda muito. Outra dificuldade é a comunicação. Como a gente não está nesse eixo, não estamos próximos aos veículos, às pessoas que escrevem e isso tem sido um trabalho árduo no último ano, que é levar o nome da marca aos veículos com maior alcance. Esse é o nosso trabalho agora. E também ponto de venda, tenho sempre que procurar ponto de venda fora porque ainda não temos planos de abrir uma loja em São Paulo ou no Rio, que eu acho que seria ótimo pra ter mais representatividade. Pra trabalhar em cima disso e burlar um pouco essa dificuldade, vou muito a São Paulo desde quando a gente entrou no Brazilians to Be, pra tentar fazer um networking com pessoas do Brasil inteiro.
A Reptilia foi uma das marcas brasileiras que representaram os BRICs na semana de moda da África do Sul. Como aconteceu?
Sim, representamos o Brasil junto com a Helen Rödel, que já esteve no BtoBe também e faz um trabalho incrível com crochê. É bacana ver que foram duas estilistas fora do eixo Rio-São Paulo, isso também pode ser um atrativo de vez em quando. Aconteceu da seguinte forma: quando eu participei da incubadora BtoBe, foram quatro anos, eu tive muito contato com a Apex, com a Texbrasil, com as iniciativas que existem pra exportação de produtos culturais. A gente tem uma parte desses órgãos que estão dedicadas à economia criativa, que é moda, música, artes cênicas, design gráfico. Nisso eu comecei a ficar atenta a possíveis convites e ações que acontecem voltadas pra mostrar nossos produtos lá fora.
Em julho teve o edital pro MICBR (mercado das indústrias criativas do Brasil), uma iniciativa do governo que acontece agora em novembro. Eu submeti todo o material da marca e ganhamos o edital pra apresentar nossa marca pra compradores internacionais, como também a possibilidade de fazer um desfile, que aconteceu dia 06 de novembro em São Paulo junto com as outras marcas participantes. Como fui escolhida pra fazer esse desfile, quando o Itamaraty recebeu o convite pra levar dois designers a África do Sul, eles entraram em contato com o Ministério da Cultura, que, por sua vez, disse que já tinham uma designer que participaria do MICBR, que era eu, e então me indicaram pra ir lá também, pois eu já havia passado por todo o processo do edital. Foi meio que em cima da hora, tivemos que providenciar uma nova coleção pra apresentar lá. Chama-se Mulheres Extraordinárias, que fala bastante do feminismo, mostra um pouco da força da mulher nas roupas.
Quais são seus próximos planos?
Quero continuar com esse foco no mercado externo, aproveitando uma moeda mais forte e ter um produto mais competitivo. A gente espera com esse desfile também fechar alguns negócios na África do Sul, fechar um ponto de venda por lá. Também queremos fechar um ponto de venda em Nova York, que é uma das reuniões que a tivemos no MICBR. Outro plano que a gente tem é abrir outra loja, mas ainda não sabemos se aqui no Brasil ou no exterior. A proposta da Reptilia, de ser uma marca democrática, da igualdade e que surgiu a partir de um programa governamental, precisa ter um meio social no nosso país que aceite essa proposta e compre essa ideia.