A sustentabilidade tem transformado a indústria da moda na última década. Ao mesmo tempo em que expõe o trabalho sujo que acontece no mercado, ela incentiva mudanças e divulga informações necessárias para as transformações.
Infelizmente foram necessários alguns desastres como o Rana Plaza para realmente acender a luz vermelha no mundo sobre esse assunto. Mais recentemente, após o escândalo da Burberry e notícias como a de que a indústria da moda contribui mais para a poluição do que a indústria de aviação, cada vez mais marcas e até cidades têm se comprometido a lutar com seriedade contra a destruição do meio ambiente e contra o trabalho injusto.
Paris acaba de dar o exemplo com seus planos de se tornar a capital de moda sustentável no mundo. A iniciativa leva o nome de Paris Good Fashion e irá implementar, nos próximos cinco anos, os passos que convoca a indústria para práticas mais conscientes. Seu apogeu vai coincidir com os Jogos Olímpicos 2024, que também acontece em Paris. “Nosso papel é encorajar a criatividade enquanto lutamos contra as mudanças climáticas; continuar a produzir na França ao mesmo tempo em que protegemos nossos recursos naturais; e desenvolver a indústria ao mesmo tempo em que cuidamos de nossos artesãos”, disse Antoinette Guhl, responsável pela Economia Social e Solidária. “É nossa missão inventar um novo futuro para a moda”.
A ideia é formar uma comunidade aberta que vai reunir profissionais de moda, marcas, empresários, designers e especialistas que irão trabalhar juntos para estabelecer um roteiro de ações. A prefeitura de Paris, a Fédération de la Haute Couture et de la Mode, a plataforma criativa Eyes on Talent, a fundação Ellen MacArthur (que promove a economia circular) e a incubadora Les Ateliers de Paris fazem parte da iniciativa que já tem o apoio do grupo LVMH e das Galerias Lafayette.
Os membros do comitê focarão seus esforços em três temas: a criação de uma economia circular, a melhora do fornecimento e da rastreabilidade e o trabalho em cima de tornar alguns processos mais sustentáveis, como distribuição, energia e comunicação. A primeira parte desse roteiro será divulgada em junho em um evento que inclui conferências e um prêmio para design inclusivo, em parceria com a France Handicap.
Enquanto isso na Índia…
Praticamente ao mesmo tempo que Paris anunciava a iniciativa Paris Good Fashion, um estudo feito pela Universidade da Califórnia, em Bekerley, foi divulgado, revelando os abusos enfrentados por trabalhadores do comércio de vestuário por toda a Índia.
Muita gente nem pensa nos botões de suas camisas ou nos paetês costurados em seus vestidos, mas esses detalhes são feitos, em sua maioria, por mulheres e meninas indianas em situações de extrema vulnerabilidade. Entre muitas informações, o relatório mostra que elas trabalham por US$ 0,15 por hora de trabalho e também destaca que trabalho infantil e o trabalho forçado são abundantes e os salários regularmente não são pagos. O estudo de 60 páginas pode ser visto na íntegra aqui.
Uma reportagem do The Guardian revelou que mulheres de uma fábrica em Blangadesh ganhavam 35 pences (o equivalente a R$ 0,0167) por hora para fazer uma camiseta das Spice Girls que seria vendida para arrecadar fundos para a Comic Relief, uma das principais ongs do mundo.
Este é o estudo mais mais abrangente sobre as condições encaradas pelos empregados do vestuário, cujo trabalho geralmente envolve a aplicação dos retoques finais em uma peça de roupa, incluindo bordados, franzidos e botões. “Todas as grandes marcas, todos os varejistas e todos os que compram roupas da Índia são tocados por essa questão”, disse Siddharth Kara, autor do relatório e palestrante da Universidade da Califórnia. “Isso acaba nas prateleiras de todas as grandes marcas do Oeste”, avisa.
Segundo Kara, são as grandes marcas que estão na melhor posição de acabar com essas condições. “Não basta dizer ‘ah, eu não sabia que as fábricas estavam terceirizando’. Cabe às empresas exigir transparência e formalidade. Na ausência deles,
é claro que a exploração não será controlada”.
A pesquisa, que entrevistou quase 1500 trabalhadores, aponta que:
– Um em cada cinco trabalhadores tem 17 anos ou menos. O mais jovem entrevistado tinha 10 anos.
– Dois terços das crianças que trabalham não frequentam a escola.
– No norte da Índia, uma em cada 10 pessoas está presa no trabalho forçado.
– A maioria dos trabalhadores na India não tem um contrato nem pertencem a um sindicato, deixando-as sem nenhum meio de buscar reparação por injustiças e maus tratos.
– 99.2% dos trabalhadores estavam sujeitos a condições de trabalho forçado sob a lei indiana, o que significa que não recebiam o salário mínimo estipulado pelo Estado. Na maioria dos casos, os trabalhadores recebiam apenas um décimo do salário mínimo.
– É comum os pagamentos atrasarem até dois meses, prática que ainda se agrava em períodos de grande demanda como o Natal. Imagine que você ganha pouquíssimos centavos por hora e ele ainda atrasa dois meses para chegar.
– 85% dos trabalhadores diz que trabalham em cadeias de lojas americana ou europeias.
Um artigo publicado no The Fashion Law mostra que um pequeno aumento no custo de uma camiseta já seria o suficiente para aumentar o salário dos trabalhadores nas redes de fornecimento e tirá-los da linha de pobreza. “Nossa pesquisa mostra que isso exige apenas um aumento de 20 centavos no preço de varejo de uma camiseta fabricada na Índia. Esse pequeno aumento pode elevar os salários em até 225% na Índia, diminuindo a diferença salarial entre os trabalhadores mais vulneráveis da cadeia de fornecimento, como os produtores de algodão”.
Há iniciativas como a Global Living Wage Coalition, que foi fundada em 2012 para fortalecer os sistemas de padrões de sustentabilidade para o benefício das pessoas e do meio ambiente.
Mas ainda há um longo caminho pela frente. Essas duas notícias parecem representar extremos, riqueza e pobreza, passado e futuro, como poderia ser e como é de fato. Mas o fato de que Paris se compromete com essa luta com o apoio de todos os setores, dos criativos ao empresariado, não deixa de ser uma luz no fim do túnel que, hoje, muitas pessoas ao redor do mundo, ainda não conseguem enxergar. Eles não conseguem olhar para frente, somente para baixo, para a linha e agulha em suas mãos finalizando nossas roupas.