O declínio do trabalho manual de alta qualidade é uma questão que a moda vem enfrentando, especialmente o segmento do luxo, que necessita de um nível técnico muito rigoroso. O grupo Kering, por exemplo, mantém duas escolas de artesanato, com foco em vestuário e fabricação de couro. O governo britânico também está encorajando e ajudando marcas como Ralph Russo a criar esquemas de ensino de técnicas artesanais – Russo é a única marca britânica a participar da semana de Alta Costura.
Grifes menores, como a da francesa Amelie Pichard, têm lutado para manter suas produções em seus países de origem devido a falta de habilidade manual local. Amelie encontrou no Afeganistão o que buscava: artesãos com uma rica herança cultural e técnica.
A designer de joias londrina Pippa Small produz 30% de suas peças no Afeganistão há mais de 10 anos. A Burberry também compra dos artesãos afegãos. A marca britânica traz de lá o cashmere usando como meio de campo a Oxfam, que tem um trabalho direto com muitas comunidades locais.
Mas fazer negócios em regiões devastadas pela guerra é um desafio. Lá, por exemplo, Small tem que pagar por geradores extra para suprir as quedas de energia e também por seguranças para proteger artesãos que trabalham em áreas muito violentas.
E se no Ocidente vemos a escassez dessas habilidades, em países em desenvolvimento o artesanato é o segundo maior produto de exportação legal – este mercado fez US$ 34 bilhões em vendas em 2018, de acordo com estimativas da ONU. Nas regiões que estão se recuperando de conflitos ou atualmente em guerra, essas exportações são uma fonte de renda particularmente valiosa. As pessoas estão vivendo sob o medo do ataque constante ou sob uma forte presença militar. Um emprego não apenas oferece ajuda financeira, mas também apoia pessoas talentosas que estão presas em uma situação política e econômica da qual não têm controle.
Se há a demanda e há a oferta, como operar em regiões tão conflituosas e perigosas? Há hoje algumas plataformas que não apenas funcionam como uma ponte entre esses artesãos e o resto do mundo, vendendo seu trabalho, mas também orientam profissionais e marcas ocidentais que buscam sua expertise manual.
Um desses canais é o e-commerce Ishkar, fundado por um casal francês que morou no Afeganistão. No Ishkar pode-se encontrar joias, roupas, bolsas e objetos para a casa criados e produzidos por artesãos no Afeganistão, Yemen, Mali e Síria. “Em ateliês por todo o Afeganistão – de aldeias nas montanhas a bazares urbanos em porões – nós vemos artesãs mergulhadas em história e ricas em cultura. No entanto, lá não há nem o dinheiro nem a demanda por artesanato de alta qualidade. Negligenciados, incapazes de sustentar seus negócios, muitos abandonam suas ferramentas e, com elas, suas habilidades ancestrais. O mesmo acontece na Síria e Mali, Iêmen e Iraque”, contam em seu site oficial. Em momento de tensões mais graves, eles usam uma base área militar dos EUA para enviar até Londres os produtos comprados.
Também vale destacar outro marketplace focado em artesanato feito por refugiados de Kabul ao Vietnã, o Artisan & Fox. Além de vender, eles também desenvolvem projetos com facilitadores locais no empoderamento de mulheres.
Há também ONGs que criaram sistemas de apoio e redes de fornecimento que as empresas ocidentais podem usar para conseguir chegar ao artesão com a técnica necessária. As ONGs ficam com uma pequena porcentagem para cobrir alguns custos, como remessas, manutenção, transporte e taxas.
Uma dessas iniciativas é a Turquoise Mountain, onde o casal do Ishkar encontra muito dos artistas que hoje vendem em seu site. Com financiamento do British Council e do Norwegian Refugee Council, entre outras entidades, a instituição funciona como um canal de confiança de marcas que querem produzir na região, como Asprey, Kate Spade e Pippa Small. Em Cabul, as mulheres aprendem a arte da joalheria, cerâmica, caligrafia e trabalho em madeira. Small empregou 25 artesãs na região para a criação de uma coleção chamada Turquoise Mountain, com as cores vibrantes do lapis lázuli e da turquesa, abundantes na região.
Nathalie Paarlberg, vice-diretora da fundação, diz que os artesãos afegãos são treinados para atender aos requisitos dos compradores internacionais. A fundação desempenhou um papel importante no crescimento das vendas de artesanato no país, de US$ 10 mil em 2006 para US$ 1 milhão em 2018, segundo dados da Vogue Business.
Uma outra opção de parceiro é a UNHCR (Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas), que lançou a plataforma Made51 para justamente conectar varejistas com grupos sociais nos países em conflito. Por ser a ONU, há algumas facilidades. Quando o acesso aos campos de refugiados na Tanzânia foi repentinamente restringido, os facilitadores da Made51 puderam usar as conexões políticas que o UNHCR construiu ao longo dos anos para exportar cestas tecidas para a West Homm, uma marca de homeware dos EUA.
Muitas e muitas vezes a moda já usou o trabalho de artesãos ou simplesmente surrupiou sua cultura sem dar os devidos créditos. Foi o que aconteceu com Isabel Marant na coleção de Verão 2015, quando seu desfile tinha peças que espelhavam o trabalho da tribo mexicana Oaxaca.
Recentemente, o governo mexicano oficialmente acusou a marca Carolina Herrera de apropriação cultural. O que no site da grife aparece apenas como “uma coleção que brinca com as cores e o astral de férias latinas”, são na verdade padronagens e bordados com raízes nas comunidades indígenas de Hidalgo e Coahuila, ambas atingidas pela violência de gangue. A Secretária de Cultura Alejandra Fausto enviou uma carta a Carolina e ao diretor criativo Wes Gordon perguntando se essas comunidades poderiam se beneficiar da venda das roupas. Ela então descreveu o significado de alguns dos padrões e pediu aos designers uma explicação pública de como eles vieram a usa-los. Em outras palavras, ela arrasou.
ISHKAR: Our Story from ISHKAR on Vimeo.
A designer Amélie Pichard, antes isso era muito comum, mas ela acredita que uma mudança está a caminho. Saber como a peça foi feita, onde e por quem é uma obrigação de todas as marcas.
Foto de capa: Lorenzo Tugnoli