Por Pedro João
Apesar de baseada em fatos reais, a história é um terreno de debate. A proposta de rever o passado para compreender o presente está invariavelmente impregnada por uma ideologia. Parte-se sempre de um ponto de vista. Isso posto, quem tem o hábito de pesquisar a história da moda dominante na atualidade sabe que, na verdade, estamos falando do luxo ocidental europeu. É possível que na África ou na Ásia outros modelos de criação, confecção e venda de roupas já existissem antes das estruturas clássicas francesas da Alta-Costura. Contudo, esse foi o esquema que, em certa medida, se “globalizou”. Assim, quando pensamos no papel de um ou uma modelo, precisamos voltar para Marie Augustine Vernet, a esposa do inglês que entende-se por inventor da Alta-Costura e da profissão de estilista, Charles Frederick Worth, no século XIX.
Provavelmente, dentro daquele contexto, ela foi a primeira “embaixadora de marca”, uma espécie de proto-influencer que funcionava como espelho para as clientes do ateliê de seu marido. Ela vestia antes as peças que seriam apresentadas para a realeza que viria (ou não) a se interessar em comprar aquelas roupas. Depois, ainda foi a inventora das “sósias”, a profissão tipo “bico” que depois profissionalizou-se na figura da modelo. Eram mulheres de menor poder aquisitivo na sociedade francesa que se pareciam com as clientes de marca e, por mais absurdo e desumanizante que pareça, vez ou outra eram rebatizadas com apelidos que remetiam ao nome das clientes.
Acontece que o público alvo dessas “sósias” eram mulheres brancas, ricas ou nobres, desesperadas por encaixarem-se no papel social a elas designado: um bibelô, uma mãe ideal, uma esposa honrada… No caminho até 2019, esse papel social transformou-se radicalmente (apesar de ainda ser espaço de muita luta política). A clientela mudou, expandiu-se para o mundo inteiro, tem todas as cores, corpos e carteiras. E no entanto, até os anos 1990, as passarelas eram dominadas por jovens entre 17 e 20 anos de idade, altas, magras, loiras…
Na segunda década do século XXI, esse questionamento chega com urgência. Quando coloca-se uma pessoa sobre uma passarela, entrega-se a ela um espaço momentâneo de poder. É uma validação da existência daquele tipo de corpo, daquela cor de pele, daquela idade, de seu universo. Se antes as passarelas não se importavam em repetir o modelo anacrônico de sua origem, agora fazer um desfile vem com a responsabilidade de entender que o mundo está muito além desse padrão de beleza arcaico e opressivo. Há beleza em todos os corpos. Pelo menos é o que acredita Carô Gold que, ao lado de Pitty Taliani, dirige a Amapô. “Tenho todo o respeito do mundo para com as modelos convencionais. Mas elas não representam a mensagem que queremos passar nesse momento. O que a gente quer é que o nosso cliente, a plateia do desfile, se sinta incluída na conversa que a Amapô se propõe a criar. Queremos que eles pertençam ao nosso universo e possam navegar naquilo que estamos apresentando”, disse ao FFW no backstage de seu desfile no SPFW N48. Vale lembrar que, desde 2009, o evento vem institucionalmente incentivando os estilistas e as marcas a levarem a diversidade racial em consideração ao armarem seus castings.
Desde sua última inserção na semana de moda paulistana, a Amapô vem apostando no que convencionou-se chamar de “street casting”: a estratégia de convidar pessoas com biótipos interessantes que podem ou não ser modelos profissionais. Nesta temporada, várias marcas adotaram essa mesma postura e parecem estar determinadas a atualizar o que significa ser uma ou um modelo. A estreia efervescente do modelo Sam Porto nesta temporada é um sinal de que os tempos estão mudando.
A ÃO também apostou em “não-modelos”. A estreante Ângela Brito fez um casting poderoso e 100% negro ao passo que a veterana Cavalera misturou diferentes corpos, histórias e belezas em um casting de maioria negra. Fernanda Yamamoto chamou família, amigos, artistas, atores e atrizes globais para sua passarela que comemora os 10 anos de sua marca. João Pimenta, por sua vez, homenageou as mulheres lésbicas em uma coleção quase toda feita e apresentada por LGBTs e Isaac Silva fez seu debut no SPFW trazendo ainda mais diversidade para as passarelas. “Quis ser uma porta para outros profissionais se destacarem, terem um chance. Eu não comecei a minha marca porque eu queria. Fiz isso porque ninguém me deu espaço em suas marcas e eu quero fazer diferente. Quero dar espaço para quem precisa e para quem merece”, disse o estilista no backstage ao FFW a respeito de sua equipe e de seu casting.
A dívida que a moda tem com a diversidade ainda está longe de ser paga, se é que isso um dia poderá, de fato, acontecer. Ainda assim, existem aqueles que estão escolhendo um caminho mais humano e menos conservador na hora de escolherem as pessoas que farão parte de seus castings. Vale dizer que os estilistas, através da história, sempre foram cobrados de ter uma postura criativa questionadora, que não aceitasse as modelagens mais simplistas, as estratégias de estilo mais rasas, as combinações mais comerciais e, em paralelo à criatividade e à coragem depositada nas roupas, o formato em que elas eram apresentadas remontava um cenário de séculos atrás. Estamos longe do ideal, mas é bom saber que, pelo menos, as coisas finalmente começaram a mudar.
Isso fica claro no ranking dos modelos que mais desfilaram nesta temporada. No feminino, as cinco primeiras meninas são afrodescendentes.
1. Nayara Oliveira (Prime) – 13 desfiles
2. Mariane Calazan (Way) – 12 desfiles
3. Isadora Oliveira (Elo) – 11 desfiles
4. Elle Maciel (Way) e Raynara Negrine (Joy) – 10 desfiles
No masculino, o número 1 é o primeiro menino trans a desfilar no evento, o segundo é negro e dividindo o quarto lugar, temos um oriental e dois negros.
1. Sam Porto (Rock) – 9 desfiles
2. Felipe Rocha (Prime) – 6 desfiles
3. Dries Van Steen (Way) – 5 desfiles
4. André Martinez (Elle), Ariel Bernardes (Joy), Elia Lee (Prime), Fernando Schenerock (Way), Gabriel Pita (Way), João Orlandin (Way) e Marcelo Lima (Way) – todos com quatro desfiles