Por Lucas Assunção, publicitário e produtor de conteúdo de moda no Santo de Casa.
à esquerda look da Palomo Spain e à direita, Isabel Marant.
À medida que as semanas de moda masculina se tornam mais interessantes, ousadas e repercutidas, a diminuição da separação entre essas e as femininas nos evidenciam que a moda sem gênero, ou pelo menos algum aspecto dela, tem chegado a grande parte da indústria da moda, inclusive alguns setores mais conservadores. E não é “só” porque o público feminino tem se sentido cada vez mais confortáveis em usar roupas baggy e oversized, ou em decorrência do streetwear. Não é coincidência que produções como ‘Pose’ (2018) – série que retrata a cultura LGBTQ+ dos Bailes nos anos 90 – e ‘Legendary’ (2020) – reality show competitivo de Voguing – têm encontrado terreno fértil na cultura pop atualmente.
A quebra das barreiras de gênero na moda e, mesmo, a ousadia das produções de moda e roupa masculina são contribuições diretas da cultura LGBTQIA+. E por que agora? Não é novidade que a moda – e a cultura como um todo, na verdade – se retroalimenta e revisita décadas passadas com frequência. Não precisa de mais do que uma rápida olhada no pop atualmente – mais óbvio ainda na música – para saber que a ‘Disco’ e o final da década de 80 e início dos anos 90 estão sendo fortemente revisitados. Mesma época da efervescência da cena dos ‘Ballrooms’ e da cultura LGBTQIA+ em NY – ainda que de forma muito marginalizada, importante pontuar.
à esquerda look dior men por kim jones, e à direita LAZOSCHMIDL
Os Ballrooms – os bailes – eram reuniões frequentadas majoritariamente por grupos marginalizados, como transexuais, travestis, drag queens, homossexuais e em sua grande maioria negros e latinos. Nesses espaços eram livres para celebrarem sua vida e sua arte através da dança, da música e da “montação”. Nesses bailes, existiam as runways – literalmente, passarelas – em que essas pessoas desfilavam com looks de acordo com o tema da noite ou categoria. Não é preciso dizer que esses grupos marginalizados não tinham dinheiro para comprar as últimas tendências da moda e confeccionavam suas próprias roupas e estéticas.
Os “Adonis”, másculos, viris e brancos nunca contemplaram a população LGBQTIA+ masculina racializada e fortemente marginalizada. Transexuais, crossdressers e drag queens já questionavam os padrões de gênero na moda muito antes disso possuir um nome, com visuais andróginos e cruzando as leituras sociais de gênero dia e noite – muitas vezes por segurança.
A moda dos ballrooms sempre foi de forte contra-cultura, embaçando as imaginárias divisórias da binariedade e sendo criada de forma independente. Não surpreende também que essa estética tem sido apropriada pela indústria há tempos; desde Madonna, com ‘Vogue’ (não invalidando a importância da artista para trazer o estilo para o mainstream e seu apoio a comunidade LGBTQIA+) até o tema CAMP, do Met Gala de 2019 com pouquíssima representatividade entre os convidados e anfitriões.
Elenco de Paris Is Burning, de Jennie Livingston (1990)
A cultura e a estética do ballroom e das drag queens foi constantemente influência para a moda e para a cultura pop em um âmbito mainstream. No entanto, grande parte dos grupos sociais que compunham a cena experienciaram pouca ascensão ou prestígio social com isso. Hoje, revisitando mais uma vez essa estética, com a moda sem gênero sendo cada vez mais uma realidade e a história e cultura desses grupos ocupando os principais canais de streaming, estaria a moda disposta a não apropriar e deixar a população LGBTQIA+ protagonizar suas próprias histórias?
Talvez, a moda agênero e a androgeneidade na moda masculina estejam tão fortes agora, porque revisitamos uma época de forte efervescência da cultura LGBTQIA+ mas que, só hoje, é tida como aceitável o bastante para agraciar o mainstream em sua essência, e não apenas através de apropriações.
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