Ponto de Vista por Eduardo Viveiros
Estamos vivendo a morte do aforismo, né? As coisas estão mais rápidas, mais incertas, mais curtas, mais grossas e cada vez mais… precisando de reflexão. É esse o suco que tirei desse limão-cravo que foi o desfile da Prada de hoje.
Eu costumo afirmar que a moda está acostumada a ter Miuccia como a sua figura professoral — ame ou odeie, concorde ou discorde, no final alguma coisa será absorvida. Seja no jeito low profile de ser e vestir e falar e maquiar, seja no pensamento antigo (mas não necessariamente desatualizado) de encarar a cultura geral como influência ou (principalmente) no uso da exploração quase irônica do mau gosto e da feiúra como marca estética desde as suas primeiras coleções. A aula de hoje foi exatamente essa: bora baixar a bola das expectativas, criançada?
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Eu também vinha afirmando (por falar em aforismos…) que este desfile era a única coisa que poderia salvar 2020 de ser um desastre completo. Um ardor que foi crescendo desde o anúncio de que Raf Simons assumiria a cocriação da marca, em abril — era o casamento perfeito de duas cabeças aparentemente idênticas que poderia dar em… sei lá o que. De tão próximos os dois, o resultado era tão óbvio quanto incógnito.
A entrada de Raf na Prada é uma daquelas situações ainda novas, de um diretor criativo trabalhando ao lado da criadora original. Não há substituições e novos caminhos terão necessariamente que passar pelos anteriores. Para ele também é um caso inédito. Quando passou pela Jil Sander e, principalmente, pela Christian Dior, Raf encarou, com relativa liberdade, marcas que tinham códigos históricos marcantes. Na Calvin Klein, a liberdade de criação era teoricamente maior enquanto os códigos eram quase incipientes. Agora, ao lado de Miuccia, pulou numa fogueira que combina códigos fortíssimos e uma liberdade que vai só até a segunda página.
Eu daria um dedo para ver um streaming aberto com essa dupla trabalhando a quatro mãos. Afinal, são dois criadores extremamente cerebrais, com maneiras peculiares de moldar o mercado da moda e charmosamente cabeças-duras. Mas com o acesso ao backstage cada vez mais cheio de barreiras em tempos de pandemia e desfiles virtuais, só nos resta analisar o filtro dos resultados. E aí o jogo é entender até onde ele tentou ir e até onde ela cedeu — mais as dificuldades de produção com o cenário inédito de oficinas restritas, ateliês esvaziados, álcool gel e restrições mil.
Os estudos em comum dos dois estilistas se mostraram presentes: a mulher que entende que o cérebro é mais sexy que o corpo, por exemplo, e a paixão pelo uso e proposição do uniforme e do esportivo.
Raf trouxe a saia que faz sempre, Miuccia veio com as calças que ama. Ela entrou com as estampas da Prada (que nem acho tão interessantes, mas isso é problema meu), ele meteu os silks gráficos de referências intelectualoides (que me têm como cadelinha) criados com Peter de Potter.
Ele tomou o triângulo da Prada e transformou em iconografias interessantes. Ela pegou as modelagens de capas e trenchs que ele fetichiza e construiu no náilon reciclado, presos com as mãos como a nova clutch de uma mulher que saiu correndo para ir ali.
Os anos 1990 dela, os anos 2000 dele… É quase um bingo inevitável.
Dentro de tudo, o que me atrai especialmente são as sobressaias e tops com bolsas acopladas. É um jeito de reforçar que, num ano que “todos nós ficamos em casa”, o domínio das handbags (e, por consequência, da velha moda) parece que vai ficando para trás. E são reflexos de um jeito contemporâneo de pensar uma moda pós-utilitária — para esse novo anormal, ela tem que ter mais que funcionalidade, tem que ter propósito. São acepções paralelas mas, repare, razoavelmente distintas.
Passamos por uma época em que desfiles desinteressantes em transmissões mirabolantes estão tentando dar sentido a uma terra arrasada. Por isso minhas expectativas por esta dupla eram altas e, também por isso, a minha fantasia foi aterrada com um calma aí. Eu vinha tratando como a salvação de um sentimento que nem tem mais importância e dei de cara com o começo de algo que não tem definição clara.
Mas aí é que está. Assim como 2020 é um epílogo de um tempo que não volta mais, este desfile foi um prólogo de um momento que ainda não chegou. E por isso foi, se não uma salvação, um momento ultrarrelevante do ano — para além do factóide-estreia-do-estilista.
A dupla (se sobreviver ao bate-cabeça criativo e à possível venda da Prada ao grupo Kering que comenta-se nos bastidores) está ali, sabiamente mirando no longo prazo — e foi o que eu vi reforçado na aula de hoje. Não precisamos de resultados para ontem. Podemos dar o tempo que os processos merecem e vai ser muito mais interessante ver essa evolução acontecendo com um passo por vez.
Parece uma contradição mas, se estamos vivendo o apocalipse diariamente, é muito mais sábio parar de gastar fichas à toa. É bom ver pelo menos uma parcela da “alta moda” pensando assim.
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