Por Vinicius Alencar @vifranalencar
Para muitos a moda é catalisadora de desejos e anseios, reflete períodos históricos e levanta questionamentos. De tempos em tempos, especialmente nos mais sombrios, estilistas e criadores recorrem ao lúdico, enquanto outros, em meio aos dilemas do presente, imaginam um futuro distópico, ou simplesmente reinterpretam a dureza da realidade.
Em meio às limitações – não só econômicas – a moda sempre arruma fórmulas de causar desejo, seja com aforismos, seja com doses poderosas de fantasia e sonho. Na temporada de verão 2021 internacional encerrada na última terça-feira, isso ficou bem claro.
Romance e escapismo
Em entrevista ao Business of Fashion, Daniel Roseberry, diretor criativo da Schiaparelli, foi um dos designers mais transparentes. “A moda é tão obcecada em se prever, porque, no fundo, sabe como não é essencial!”, refletiu.
Sua coleção à frente da marca foi marcado pelo surrealismo que lhe é característico e salvo por acessórios interessantes: óculos dourados, anéis que imitavam unhas, cadeados e até uma máscara que cobria o nariz e os lábios, sem tirar suas formas humanas. Em suas próprias palavras, “um conto psycho chic”.
Outro que investiu em um conto de fadas sombrio e com perfume roubado dos new romantics, foi Olivier Theyskens. Véus, volumes, babados, mangas dramáticas para uma princesa contemporânea obcecada por Kate Bush. John Galliano fez algo parecido na Maison Margiela, a coleção foi criada a partir da ideia de um casamento gótico sul-americano, com direito a tango, muitos elementos noir e, claro, drama.
Jeremy Scott fez um desfile para a Moschino estrelado por 40 marionetes (e também criou marionetes dos principais nomes da imprensa internacional sentados na fila A, de Anna Wintour a Vanessa Friedman) – os fashionistas brasileiros lembraram na hora que o estilista Fause Haten havia feito o mesmo para mostrar sua coleção de verão 2014.
Na Undercover, Jun Takahashi misturou de Hello Kitty a Picasso, passando por Patti Smith e elementos da monarquia, como coroas e cajados. Segundo ele, resumiria a coleção em cinco palavras: escapismo, loucura, prazer, realidade e fantasia.
Por seu histórico como figurinista de balé e teatro, Arthur Arbesser olhou para suas origens e de lá trouxe arlequins, pierrôs e colombinas da Commedia Dell’Arte. “Em meio a tudo isso, achei que era o momento certo de eu fazer apenas o que quero e acredito”, disse em entrevista a Luke Leitch, da Vogue América.
J.W. Anderson revelou que além das roupas em si, se debruçou em uma longa pesquisa para mostrar as peças de uma forma que ainda mantivesse a essência da coleção, que reinterpreta elementos da indumentária inglesa dos séculos 16 e 17 com estética street. A solução foi adicionar um toque contemporâneo as paper dolls, ao imprimir 37 looks em 2D. “O que realmente amei neste ano, por mais que tenha sido um desafio, é que encontrei o romance na moda novamente”, disse Anderson em conversa com Sarah Mower.
Realidade
Do outro lado, um grupo de designers seguiu por um caminho sem pedras douradas, seres mágicos ou alegorias. Ao invés disso, optaram por encarar a realidade de um ano marcado por pela pandemia e suas consequências catastroficas, crises políticas, desastres naturais, racismo e desigualdade, para nos fazer pensar como esses acontecimentos e transformações irão se reverberar nos próximos anos.
Eckhaus Latta foi a primeira marca a encarar a realidade de um jeito tão cru. Mike Eckhaus e Zoe Latta não queriam que a apresentação fosse um espetáculo, mas uma cena cotidiana. Modelos então desfilaram entre corredores e bikers, no East River, tendo a ponte de Manhattan como cenário – todas usavam máscaras, item que foi ignorado por 99% das grifes nessa temporada.
“A moda não pode mudar o mundo, mas pode mudar a forma das pessoas pensarem”, declarou Rick Owens logo após sua apresentação que misturou passado, presente e futuro, elementos anárquicos e bíblicos. O resultado futurista foi bem cerebral, com peças criadas a partir de desfiles anteriores (como, por exemplo, os tules dos vestidos que saíram do inverno 2012). 45 looks mascarados para serem usados não só daqui a seis meses, mas principalmente hoje.
Francesco Risso, diretor criativo da Marni, revelou que os meses de confinamento foram completamente opressores e introspectivos, fazendo-o pensar sobre a fragilidade da liberdade. A partir dessas sensações, nasceu a coleção Manifesto, em que 48 pessoas ao redor do mundo (de Tóquio a Milão) foram convidadas para vestir as criações e serem filmadas/fotografadas por aqueles com quem estivessem dividindo o confinamento.
Em Amor Fati, Marine Serre hipnotizou fashionistas ao redor do globo com um curta protagonizado pela cantora irani-holanesa Svedaliza que é distópico, envolvente e questionador. As roupas ganham um papel quase que secundário em meio a tantas quebras de espaço, tempo e gênero. A criatividade é também notada nos detalhes: objetos do dia a dia como apitos e abridores de lata foram ressignificados como acessórios.
Apocalíptico, [extremamente] realista, visionário, três adjetivos que acompanham o trabalho de Demna Gvasalia desde que assumiu a Balenciaga. Ao ouvir os primeiros samples do icônico hit Sunglasses at Night reinterpretado pelo seu marido, o produtor BFRND, você sente vontade de dançar e também certa estranheza ao mesmo tempo. Modelos andando pela Rue de Rivoli e nos arredores dos Jardins de Tuilleries mostram uma Paris noturna e chuvosa e um glamour que segue seus códigos sombrios.
“Eu ouvi uma citação de Martin Margiela quando estava trabalhando lá, sobre o valor do ‘traço do tempo’ nas roupas. Isso me tocou profundamente. Guardamos roupas assim até a morte. Quer dizer, eu tenho um moletom de 15 anos. Está desbotado e tem buracos. Mas não posso jogar isso fora. Então, pensei: no ano de 2030, como ficarão suas coisas favoritas, envelhecidas e destruídas?”, refletiu em uma entrevista para a Vogue americana.
Para Demna a moda em 10 anos será totalmente sustentável, upcycle e completamente sem gênero. Será? Ao olharmos pelo retrovisor para os desfiles em 2020, com certeza, confundiremos sonho, medo, esperança, melancolia e fantasia.