Finalmente, parece que estamos normalizando homens usando roupas tradicionalmente femininas. O que isso quer dizer?
Na última temporada de moda, bem como nos tapetes vermelhos de premiações, no feed das redes sociais temos visto a consolidação de um movimento que vinha crescendo timidamente há algum tempo: homens usando saias, vestidos e vestimentas tidas como femininas em um fortalecimento da moda sem gênero.
Marcas como Ludovic de Saint-Sernin (que tem o genderless em seu DNA), a Palomo Spain, Stefan Cooke e até Burberry, todas trouxeram saias em suas coleções. No Grammy 2021, o cantor e produtor porto-riquenho Bad Bunny, um dos mais populares artistas da atualidade, cruzou o tapete vermelho de saia da Burberry. E apesar de não ter sido dessa vez, Harry Styles também é outra figura que frequentemente utiliza peças “femininas” em suas produções.
Homens de saia? Sim, mas e agora?
Apesar de serem os meios mais conhecidos, saias e vestidos não são os únicos códigos da vestimenta feminina que têm sido desconstruídos para produções masculinas. Cabe destaque também para as botas, o salto, corpetes, espartilhos, meias-calças, dentre outros.
Além dos já citados, Lil Nas X, Jaden Smith, Kanye West, Yungblud e Billy Porter são algumas das figuras públicas à frente dessa reapropriação de códigos de gênero no vestuário. Mas, por mais que isso seja algo cada vez mais frequente, ainda parece ser um tabu. Até mesmo no Big Brother Brasil deste ano a discussão apareceu quando o participante Rodolffo questionou as túnicas e vestidos utilizados por Fiuk em diversas ocasiões e se ele seria “bem vindo” à uma festa em Goiás vestido daquele jeito.
Por que essas peças de roupas se tornaram associadas ao feminino ao longo do tempo é conversa para outro dia. O ponto aqui é: por que esse assunto ainda é tão polêmico em pleno século XXI?
Isto é, porque toca diretamente na noção social de masculinidade, uma noção bastante frágil, diga-se de passagem. Ao longo da vida, homens são ensinados o que devem ou não fazer para preservar sua masculinidade e virilidade, ensinamentos baseados essencialmente na misoginia e no machismo. É por isso que uma simples roupa pode ser carregada de tanto valor social e ameaçar as estruturas da masculinidade simplesmente por ser associada ao feminino – algo que, por natureza, a masculinidade tóxica tem repulsa.
O que a moda tem a dizer sobre gênero e sexualidade?
É por isso que, por mais que não exista uma conexão inerente entre roupas, sexualidade e gênero, essa associação é sempre feita pela sociedade. Afinal, se um homem usa saia ou vestido ele só pode ser gay, bi, queer?! Drag queen? (Contém ironia).
Essa noção é essencialmente colonialista e provém de uma sociedade patriarcal moderna. Tome como um simples exemplo: os saltos altos surgem inicialmente como um artigo de diferenciação social usado por homens da nobreza francesa, portanto, a construção do salto enquanto feminino é social e não inerente a esse sapato.
Quando entendemos a origem por trás desse pensamento é fácil entender como uma coisa não é intrínseca a outra. E, se roupas não são associadas a gênero em sua origem e isso vem de uma socialização patriarcal, não há sentido em questionar a sexualidade ou gênero de alguém com base em suas roupas. A indumentária pode, sim, estar conectada ao gênero quando ligada a uma série de fatores como o contexto social e histórico específico, mas isso definitivamente não diz respeito a um homem usando uma saia ou um vestido.
Então… homens podem usar saias, vestidos e o que mais quiserem sem que isso diga nada sobre sua sexualidade ou identidade de gênero? É, basicamente, isso.
Sobre moda, gênero e sexualidade
Quando falamos de outras representações, como drag queens (uma representação artística e não uma identidade de gênero), a vestimenta pode, sim, aparecer como uma forma de associação ao feminino e justamente, de subversão de códigos tradicionais de gênero e da moda através da performance. Isso, em nenhum momento deve ser confundido com a travestilidade e a transgeneridade: que são identidades de gênero. A Identidade de gênero diz sobre a identificação de um indivíduo enquanto homem, mulher ou não-binário – destacamos aqui que a identidade travesti é essencialmente feminina e não deve ser tratada no masculino.
Por mais que a moda ou a maquiagem possam ser utilizadas por alguns grupos sociais como forma de reforçar uma identidade ou romper um estereótipo, isso diz de uma situação específica: um conjunto de aparatos utilizados em um contexto histórico e social para passar uma mensagem e corroborar para uma leitura social. De novo, em nenhuma esfera é o mesmo que uma pessoa que se identifica no masculino utilizar peças de roupas tradicionalmente designadas como femininas ou vice-versa.
É importante separar esses movimentos e manifestações sociais através da moda. Uma pessoa quebrando estereótipos de gênero dentro da moda pode fazê-lo como movimento estético e até político-social, mas que não diz de gênero ou sexualidade. Esse é o caso das coleções masculinas que citamos acima, que apresentaram peças “femininas”, como um movimento estético e uma mensagem, mas que não diz do indivíduo que as usa, já que a roupa adquire sentido a partir da apropriação de quem a está vestindo.
É também o caso de grande parte desses artistas citados, como Bad Bunny e Harry Styles. Artistas significativos nessa nova leva do movimento da moda sem gênero.
Isso tudo não é tão novo assim
Esse novo movimento por uma moda genderlss de hoje parece ser protagonizado por uma série de homens cis-héteros, majoritariamente brancos, que buscam quebrar essas barreiras de gênero através das roupas. Enquanto acreditamos que esse movimento, vindo de figuras públicas e de grande visibilidade é importante para a normalização e a disseminação da moda sem gênero, não podemos deixar de pensar, por que o protagonismo desse movimento é deles?
Existem uma série de privilégios – sociais, raciais, de gênero e de sexualidade – que, associados ao momento de mundo, ou zeitgeist, permite que esses indivíduos se aproveitem desse nicho e dessa suposta quebra de estereótipos sem o escrutínio público reservado a figuras racializadas ou não-normativas, por exemplo. Ou seja, homens brancos, cisgêneros e heterossexuais, principalmente com visibilidade, naturalmente gozam de uma posição social que os permitem certas ações e “ousadias” que não seriam permitidas a outros indivíduos.
É por esses motivos (privilégios versus preconceitos sociais) que homens brancos, cisgêneros e heterossexuais parecem ganhar muito mais visibilidade usando roupas femininas do que pessoas racializadas ou queer, que, historicamente, tem feito isso há muito mais tempo. Sim, isso também é decorrente do racismo e LGBTQIAfobia da nossa sociedade.
É preciso entender também que isso não é uma crítica a essas figuras, mas sim uma chamada para a reflexão e um olhar sobre o que nós, enquanto sociedade, entendemos como disruptivo e inovador e o que entendemos como o estranho e que deve ser rechaçado.
Para finalizar, preparamos essa seleção com algumas fíguras públicas que desde o final dos anos 60, passando pelos anos 70, 80 e 90 já questionavam o gênero na moda muito antes disso ser cool, abrindo caminho para o que vemos hoje.