Em 2016 o fotógrafo Fabiano Rodrigues e Rafael Varandas me apresentaram o Felipe Oliveira, recém chegado em São Paulo, propondo uma história para a FFWMAG. Assim que vi as fotos não pensei duas vezes. As fotos, a história e o skate de Felipe traduziam exatamente o que eu buscava para a edição 42 da revista.
No Dia Internacional do Skate resolvemos bater um papo com Felipe Oliveira, cinco anos depois, agora um dos nomes mais quentes da cena brasileira contemporânea de skate. O estiloso skatista baiano, todo tatuado e de fala mansa, que faz 26 anos essa semana, foi iniciado no skate durante a infância por seu irmão mais velho. Já seu interesse por estética e moda veio da sua mãe, que desde pequeno o vestia com estilo, com roupas que ela ganhava de doações. Essas referências ele transformou em ideia e seu projeto atual: sua marca de roupas WORLDXIT onde imprime suas referências e estética ao criar peças novas a partir de roupas usadas e descartadas. Felipe também faz parte do time de skatistas da Converse Cons do Brasil oficialmente há 6 anos. Na próxima semana, o Felipe se torna profissional.
Felipe nos contou sobre suas raízes, seu interesse por moda, sobre machismo e racismo na cena de skate.
Quando e como foi que o skate aconteceu na sua vida?
Foi bem no final dos anos 90, começo dos anos 2000, eu era bem moleque, eu tinha de 4 pra 5 anos e meu irmão já era skatista. Ele frequentava a praça da Lapinha e da Soledade, que era onde rolava umas das principais cenas do skate em Salvador. Eu comecei a frequentar essa cena com ele, conhecer a cultura do skate com ele em casa, ouvir as músicas com ele. Eu meio que fui criado por ele, porque meus pais trabalhavam com cozinha o dia inteiro. Ele me botava pra desenhar, ouvir música.
Em Salvador então existia uma cena de skate rolando
Sim, mas hoje tem mais lugares pra andar, a rua tá mais legal. Nessa época tinha uma cena mas não foi bem nessa época que eu comecei a andar de skate. Foi em 2006, quando mudamos para outro bairro chamado Cabula. Eu comecei a fazer capoeira e meu irmão tinha parado de andar de skate. Num dia, durante uma apresentação de capoeira no bairro, eu conheci uns moleques que andavam de skate na rua, tinha um corrimão, uns caixotes pra pular. Aí eu fiquei a noite inteira na roda da capoeira pensando no skate. Dormi doido pensando nisso, nunca tinha visto uns moleques no bairro andando de skate. Daí fui parando com a capoeira e me apegando mais ao skate.
Em 2006 existia uma cena muito forte do skate em Salvador. Tinha a praça Jardim dos Namorados que era lotada de skatista, uma vibe muito foda, apesar de estarmos afastados da cena principal do skate dos Estados Unidos e Europa, mas tinha uma cena muito foda, skatistas bons, um cenário estético, com qualidade de skate. Nos final de semana a gente ia frequentar essa praça e tinham os caras profissionais que iam gravar vídeo. Daí com a internet eu comecei a ir pra casa dos amigos ver vídeos. A cena nessa época tava baixando mas agora tá voltando com todo peso.
Como o skate se conecta às outras referências suas, como por exemplo a capoeira?
Pra mim, posso dizer que veio do skate a minha principal fonte de referências. E também através do meu irmão, depois da minha mãe. A gente começa a andar de skate muito jovem, a gente é bem hackeado pela informação que vem do skate, pelo design, noção de roupa, o que é bom pra andar de skate, logo, essa noção fica salva na nossa cabeça. Tendência, música… Só hoje em dia eu acho que a moda tem mais noção disso, diretamente com caras do underground dentro da moda, e acho que hoje em dia a moda tem muito que agradecer ao skate, a cena de rua, ao hip hop. Tá tudo em conjunto agora. Eu mesmo só tenho a agradecer o skate, foi do skate que aprendi tudo, que me deu motivação pra sair de casa, morar, fora, começar o trabalho com a arte, com as roupas. Foi dele que tirei todas as referências pra fazer o que faço. E agora tendo a oportunidade de fazer uma campanha toda pensada por mim, desde o tema, referências, poder expor mais o que acho, foi quando eu consegui entrar mais a fundo e pesquisar mais sobre a história da capoeira, que foi ela que me fez voltar a andar de skate.
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“Com a ajuda de vários amigos eu consegui achar vários links que conectam o skate a capoeira: a vivência de rua, usar o espaço urbano, a repressão policial, que agora mais maduro, depois de tudo que passei tenho mais consciência.”
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Com a ajuda de vários amigos eu consegui achar vários links que conectam o skate a capoeira: a vivência de rua, usar o espaço urbano, a repressão policial, que agora mais maduro, depois de tudo que passei tenho mais consciência. Todo esse lance cultural, como no skate e na capoeira, tudo é passado de um amigo pro outro. E as duas práticas foram totalmente reprimidas. Foram quase cem anos de diferença que a capoeira tinha sido proibida na Bahia e o skate foi proibido em São Paulo. Consegui achar vários links estéticos, sociais que foi me ajudando a juntar tudo isso no tênis que tô lançando, fazendo uma coisa única, que não depende só de você, depende de vários.
Você ainda pratica capoeira?
Hoje em dia eu não pratico diretamente como eu pratico o skate, mas eu pratico a disciplina da capoeira, eu estudo muito, pesquiso. Vários amigos meus da capoeira estão andando de skate, os amigos do skate estão começando a praticar capoeira. Agora em Salvador a gente tá abrindo um espaço, no lugar onde os meninos praticavam capoeira, pra ter um espaço da Worldxit onde vai ser meio que uma sede para eles praticarem capoeira, montar ateliê, ter um projeto social deles. Mesmo que a gente não esteja na rua praticando, suando, indiretamente se a gente estiver botando energia nisso, a gente também tá praticando.
A prática da capoeira de alguma forma te ajuda nas manobras que você faz no skate?
Me ajudou e me ajuda muito. Hoje mais velho consigo perceber que ter me conectado ao skate muito jovem, daí praticar capoeira e depois voltar ao skate, alguns movimentos, algumas coisas meio que ficaram salvas. Me sinto ágil pra fugir das quedas, tem a mandinga, a malandragem, porque tem que ser malandro pois o skate derruba a gente (risos).
Sabemos que o ambiente do skate ainda é muito dominado por homens e bastante machista. Como você vê isso?
Com certeza. Nós da geração mais nova do skate, que foi a geração da internet, a galera que tá vindo agora já tem outro pensamento que a gente não precisa daquela “academização” como a gente aprendeu. E pra mim já foi um desbloqueio muito grande ter vindo de Salvador e atingido o centro, as mídias. Pra mim isso já foi muita coisa, porque eu vim do Nordeste, eu era muito diferente da galera, tinha cabelão cacheado, e aqui só tinha boné. Nenhum dos caras tinha uma beleza extra, diferente do que a gente aprendeu do skate, além de uma calça larga, boné, camiseta com logomarca de patrocínio e boné com logo grande. A gente foi muito puxado pra isso durante muito tempo. E por eu ter vindo de um lugar de difícil acesso a certas marcas do skate, isso me fez buscar outras roupas, outra estética, um cabelão porque a gente não tinha um boné louco. Hoje em dia a gente tá em outro patamar, com uma molecada destravando totalmente essa ideia do skate masculino, até as meninas mesmo andando de skate pra caralho, tomando a cena do skate, fazendo suas próprias ações sem depender do espaço do skate que vem dos homens.
Isso te afeta de alguma forma?
Me afeta de diversas formas mas já afetou mais quando eu era moleque. Coisas que só percebo agora, dentro de uma certa posição, podendo escolher a galera que eu quero trabalhar, tendo a minha própria marca. Eu vejo que realmente eu busco uma outra coisa. Tem até uma coisa que eu ouvi de um amigo mais velho que morou fora, que nos Estados Unidos umas pessoas achavam que skate era coisa de branco, e um cara negro tinha que jogar basquete. E hoje em dia o cenário está tomado por skatistas pretos. Os caras estão em ascensão total. Não é só a questão do machismo e da homosexualidade dentro do skate, mas a questão étnica também e hoje em dia não tem como mais falar de ciclano sem falar de beltrano. Tá todo mundo conectado. Então podendo ver qual foi a minha luta pra conseguir chegar num cenário principal que não é voltado pro Nordeste, buscar uma outra estética que não seja uma coisa tradicional ou masculina ou sei lá como posso dizer isso, podendo ver mais skatista negro na cena, tudo isso tem a ver com o machismo também, que a gente não tem como ver de onde partiu mas com certeza foi uma coisa masculina (branca) dividindo as coisas entre negros, mulheres, homens…
Você já sofreu racismo no skate ou preconceito por causa do seu estilo?
Sim, eu nem sei por onde começar….mas agora mais maduro, mais velho eu percebo o que rolou, mesmo vindo de Salvador, uma cidade de maioria negra. Daí quando morei no Rio Grande do Sul, eu conseguia perceber bem (o preconceito) pelos skatistas de boné. Por estar em Salvador a gente não conseguia acompanhar aquela cena, aquelas marcas. Mas eu diria que o skate é mais homofóbico que racista até. Mas estamos ainda numa conquista, eu sofri, ainda sofro e ainda não me curei. Ainda tem muito a se conquistar e fazer as pessoas a entenderem nossa posição.
Falando sobre moda, você tem uma marca, a WORLDXIT, e tenho visto seus posts no Instagram você indo atrás de produzir suas peças. Conta mais sobre ela?
A Worldxit começou mais ou menos em 2017. E é uma ideia de upcycling, reuso, de tentar diminuir nosso consumo convencional, de coleções, estações, de ter que lançar coisa de tanto em tanto tempo, principalmente coisa nova, de tecido novo, de tudo novo. A gente não segue estações, a gente vai lançando drops de acordo com as ideias que a gente vai tendo, manifestada nas roupas. A única coisa que tenho que usar novo são as tintas.
Pra mim sempre foi a única opção por ser de favela, não ter acesso às coisas, não poder comprar roupa sempre, por estar de Salvador e não conseguir estar conectado com as coisas. Minha mãe sempre arrumava doação de roupa, uns sacos de roupa. Sempre tive que usar umas roupas gigantes, ou calça justa dela, porque eu via os skatistas usando calça skinny e não tinha onde achar isso em 2006 em Salvador. Vem da gente ter somente um pão e ter que fazer disso o melhor café da manhã.
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“Sempre tive que usar umas roupas gigantes, ou calça justa da minha mãe, porque eu via os skatistas usando calça skinny e não tinha onde achar isso em 2006 em Salvador. Vem da gente ter somente um pão e ter que fazer disso o melhor café da manhã”.
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E qual a sua relação com a moda? Você sempre gostou de roupas? De se vestir com estilo?
Sempre gostei! Isso é uma coisa engraçada que converso com minha mãe. Desde criança sempre tive isso, de prestar atenção, nem sei porque. Minha mãe me vestia com correntinhas e carteira. É uma coisa meio de Salvador isso, de se afastar da miséria, e o máximo que a gente puder fazer na nossa aparência, bem estar, tomar sol… A importância de se vestir, é a nossa aparência, que vale muito né. Só pela aparência você sabe como a pessoa tá. Roupas são nossas primeiras palavras, é a imagem né. E com o passar dos anos eu fui me antenando mais junto com o skate, comecei a viajar por causa do skate, vendo outras coisas, morei no Sul. O skate faz a gente olhar muita coisa de fora. Mas os primeiros cuidados vieram da minha mãe mesmo.