A temporada masculina Verão 2019 terminou ontem e deixou uma mensagem forte no ar. Não apenas pelo peso das estreias de Virgil Abloh e Kim Jones na Louis Vuitton e Dior, respectivamente, mas porque surgiu um novo desejo nas passarelas masculinas. Mais do que um simples desejo (afinal, a moda é feita deles), uma verdadeira mudança brotou. A Alta Costura, a moda em seu formato mais especial e feita apenas para o deleite das mulheres, vira o centro das atenções, só que, desta vez, para os homens.
Olhar para a essência da moda feminina – o romantismo x sensualidade – e incorporar ao vestuário masculino. Não é gender bender nem agender tampouco um homem feminino. Nada é óbvio e a leitura fica ainda mais interessante e aberta a interpretações.
A inserção dos valores da Alta Costura no masculino foi exatamente o que deu o tom na estreia de Kim Jones na Dior. Ele não apenas trouxe a técnica da couture, mas se inspirou no próprio Christian Dior, trazendo elementos como sua cor favorita (o rosa que aparece em dois ternos), as cores e padronagens do jogo de porcelana onde servia o jantar, os desenhos que decoravam a primeira loja da marca em Paris em 1947 e as abelhas que foram um símbolo da Dior nos anos 50. As transparências ultra delicadas, os tons claros e os florais bordados trouxeram, sem dúvidas, um novo feeling para a marca – e por que não, para o segmento. “Eu chamaria de romântico em vez de feminino”, disse Jones à jornalista Sarah Mower.
Tudo isso misturado a veia streetwear do estilista e às colaborações com designers cult, como Matthew Williams, da Alyx, e Yoon Ahn, da Ambush, que criaram acessórios e joias para a coleção.
O apelo pop ficou por conta da participação do artista americano Kaws, que criou uma escultura do boneco BFF feita com 70 mil flores, reproduzida em um bichinho fofo exaustivamente fotografado com todas as celebridades convidadas (e não foram poucas). Sagacidade, sensibilidade e contemporaneidade.
John Galliano, à sua maneira, também entra na conversa, aproximando o universo da couture (que ele conhece de cabo a rabo) do masculino da Maison Margiela. Mesmo insight, por caminhos diferentes. “É a forma mais nobre de costura, só que para homens. Espero que defina uma nova sensualidade”, explicou John em um podcast entregue à imprensa.
Foi no Met Gala que ele se inspirou, ao perceber os códigos em mutação da roupa formal. “Ver os jovens e sua interpretação de black tie… É uma mudança sísmica”, diz. Assim, alimentado pela energia jovem, ele propôs uma nova ideia de masculinidade, trazendo toda a riqueza do corte e da decoração normalmente reservada aos ateliers de Alta Costura. Paletós impecavelmente cortados vêm mais curtos e cinturados, os quimonos que Galliano ama também ganham suas versões, há transparências, corsets e leggings de vinil. A influência feminina é clara, mas não torna o homem feminino. É uma imagem sexy e forte de uma nova masculinidade mesmo.
E então vem Raf Simons ainda com outra perspectiva. Usando a técnica de couture, Simons fez casacos e jaquetas em cetim em cores variadas e os cortou bem amplos. Os looks tiveram influência das cenas punk e new wave e Yves Saint Laurent com suas incríveis combinações de cor. Fotos da cena punk em Londres estampavam camisetas de cetim, algumas sem manga. “Tudo, exceto alguns ternos e looks de jersey, foi feito em cetim duchesse”, ele disse à imprensa. É o cetim em sua forma mais luxuosa – o tecido é muito comum em vestidos de noiva e necessita de uma baita técnica para não enrugar. “Tem todas essas referências do punk, como alfinetes, couro e tachas, mas fiquei pensando em como usar de uma forma diferente para que você não possa reconhece-los”.
Vale notar que a inspiração de Raf vem de um cansaço com o momento streetwear que dominou a moda. Ele, que é o Deus de toda essa geração (Virgil, Kanye, Kim, etc), já foi e fez mil vezes, sempre ampliando a conversa em torno da moda masculina e conceitos de beleza. “Precisamos de um novo elemento. Sei que fiz parte dessa cultura, mas há muitos moletons com estampas hoje! Alguma coisa tem que mudar”. Quem conhece a influência de Raf não vai deixar essa frase passar despercebida. Vamos aguardar o que vem por aí.
Na Valentino, Pierpaolo Piccioli também fez de seu desfile um encontro entre o streetwear e a Alta Costura com o ápice desse namoro visto nas penas de avestruz presas na parte de trás dos sneakers, asas de pavão costuradas em um moletom cinza e num trench coat camelo e jaquetas esportivas com animais bordados. “É como a Valentino pode se manter relevante para a geração de hoje. Quero sair dessa aura de exclusividade e ser mais inclusivo. Quero realmente que a Alta Costura tenha vida. Você não pode mantê-la apenas no tapete vermelho”, disse após o desfile para a Vogue US.
A questão é que a Alta Costura nasceu e foi construída como um conceito puro de exclusividade. É muito cara para fazer e suas peças são criadas para colecionadoras e não consumidoras. Mas nos dias de hoje e nessa atual configuração de mundo, com todas suas transformações em andamento, certamente é o momento de repensar esses valores.
Por fim, o desfile de Virgil Abloh para a Louis Vuitton não gira em torno da Alta Costura, mas está dentro do desejo de liberdade e de outras linguagens para a moda masculina.
Ao contrário dos outros exemplos acima, a força desta apresentação está nos símbolos muito mais do que nas roupas. É o que a gente não vê na passarela que torna o desfile tão impactante e importante. Abloh é o primeiro homem negro a chegar nessa posição. Um americano numa maison de alto luxo em Paris, sem educação formal de moda.
Como metáfora para sua trajetória, ele usou o filme O Mágico de Oz. A imagem de Dorothy e seus amigos na estrada de tijolos amarelos é, por si só, uma complexa associação de simbolismos. Todos vão em busca do Mágico para conseguir alguma coisa: voltar para casa, coragem, coração e inteligência. Mas o que a jornada os ensina é que tudo isso já está dentro deles. A única coisa é que você tem que ir até o fim para descobrir isso.
+ Todos os detalhes da estreia de Virgil Abloh na Louis Vuitton
Soma-se a isso um desfile sem restrição de budget exibido simplesmente nos jardins do Palais Royal, em uma passarela arco-íris que mostra sua preocupação com inclusão, não apenas de gênero, mas também racial. Marketing? Estratégia? Tem tudo isso, afinal, trata-se de um business bilionário. Mas no caso deste desfile específico, a mensagem de Virgil fica mais forte: “Follow the yellow brick”.