O mundo da moda se despede de um de seus grandes nomes. Jean Paul Gaultier, o eterno enfant terrible, contou via seu perfil no Instagram que seu próximo desfile em Paris será também o seu último (dia 22.01 na semana de Alta Costura).
O aviso, que pegou todos de surpresa, aconteceu no bom humor costumeiro do estilista, que comemora 50 anos de carreira este ano. Em um video, ele simula uma conversa no celular com um amigo contando a novidade e o convidando para este momento imperdível, mas não deixa de avisar: “a marca continuará com um novo conceito”.
Mesmo que continue (ela pertence ao grupo Puig), a moda sentirá saudades da personalidade irreverente, engraçada, criativa e apaixonada de Gaultier, o designer que sempre se deliciou em provocar e desafiar as convenções. Em um momento em que o sucesso é medido somente pela caixa registradora, faltam mentes desbravadoras como a de Jean Paul para criar outras alternativas de mundos e realidades.
Não é apenas seu enorme potencial criativo, ele também tem uma ironia que sempre foi muito importante. É uma maneira de enxergar o mundo de um ponto de vista diferente do resto da maioria das marcas de luxo – Gaultier insere em seu trabalho elementos que a moda acharia cafona ou de gosto duvidoso. Ele questiona e brinca. E talvez seja seu bom humor, a forma como não se leva muito a sério que o manteve tão jovem até hoje. O estilista tem 72 anos, mas seus olhos ainda brilham pela moda, pela vida.
“Gostaria de dizer às pessoas: abra seus olhos e encontre a beleza onde você normalmente não espera.”
Filho de um contador, JPG se interessou por moda graças à sua avó que era esteticista e o deixava ver revistas e assistir programas de moda. Ele sempre admirou o trabalho de costureiros lendários da França dos anos 1960 e 1970, que eram audaciosos e originais, como Paco Rabanne, André Courrèges e YSL. Gaultier abriu sua marca em 1976 após passar pelos ateliês de outros de seus heróis: Pierre Cardin e Jean Patou, onde teve uma formação em Alta Costura. “Comecei a trabalhar com Cardin aos 18 anos. Ele era um dos principais inovadores do setor. Ele era tão livre, fazendo esses desenhos geométricos, às vezes abstratos, que eram como arquitetura, que ele havia estudado antes de entrar na moda”, conta em um artigo da CNN.
Jean-Paul construiu uma marca que abrangia ready to wear, Alta Costura e perfumaria, sempre a partir de sua visão muito ampla de cultura e sociedade, reescrevendo as regras do jogo. “Seus shows eram sempre carregados de energia e emoção. Ele questionava o que é feminilidade, o que é masculinidade, o que é nacionalidade, o que é exotismo. Gaultier adicionou um caldeirão cultural ao vocabulário da moda”, disse Pamela Golbin, curadora do Musee des Arts Decoratifs.
Em 2014, ele encerrou suas linhas de ready to wear e moda masculina, citando o ritmo frenético da indústria da moda como o motivo. Ele optou por não ter que criar 16 coleções por ano e se afogar em um infinito ciclo de merchandising, comercialização e marketing. Em vez disso, concentrou-se na sua linha de couture e na concepção de figurinos para o teatro e o cinema. “Como a guerra e a ocupação moldaram os anos 40, e a revolução sexual mudou o mundo nos anos 60, a globalização mudou o cenário de hoje”, diz.
Abaixo, relembre alguns dos momentos que ajudaram a dar forma à carreira do estilista.
Começo
Fortemente influenciado pelo armário da avó, aos 13 anos, ele começou a desenhar e criar roupas para as mulheres de sua família, mãe e avó (de quem adorava pegar seus espartilhos e desconstruí-los para poder criar algo novo em cima deles). Gaultier gosta de lembrar o dia em que pediu uma Barbie aos pais, que no lugar da boneca, deram um urso de pelúcia. Pouco tempo depois, o urso aparece de maquiagem e com sutiã, o protótipo do que seria a peça eternizada por Madonna muitos anos mais tarde.
estilo
Suas criações confrontam a idéia de gênero, misturando desde sempre moda masculina e feminina. Em suas coleções, vemos influência do punk e de diversas etnias, devaneios criativos que vão de old Hollywood ao futuro, o chique e o cafona bem humorado, tudo arrematado por técnicas de construção super elaboradas e um precioso trabalho artesanal. “Mostrar a relatividade do que é bom gosto e do que não é, é algo com o qual gosto de brincar”.
“Sempre tentei ser honesto e forçar limites da mesma maneira que antes. Nunca quis vestir o tipo clássico e elegante e percebi, logo no início de minha carreira, que nem sempre os críticos sabem o que é chique.”
casting
Os modelos tatuados, com piercing, anões, mulheres grávidas, mulheres gordas, trans, modelos mais velhos, supermodels… Os castings de JPG sempre teve um perfil de diversidade maior do que as outras marcas e tornou-se uma das características de seu trabalho. Gênero, idade, tipo de corpo e etnia são revisitados regularmente em sua passarela.
Gênero
“Um homem não usa sua masculinidade em suas roupas. Sua virilidade está em sua cabeça”. Hoje esse é um assunto em pauta, mas quando Gaultier disse isso, ele era mal compreendido. O estilista sempre batalhou para que a moda deixasse cair as barreiras do gênero, insistindo com frases como “roupas não têm gênero” e “os homens precisam aprender a lidar com sua fragilidade”.
Artistas na passarela
Muitos desfiles de Gaultier se inspiraram em artistas ou tiveram a participação ativa deles na passarela. Amy Winehouse, David Bowie e Madonna já foram inspirações. Annie Lennox, Rossy de Palma, Beth Ditto e Conchita Wurst estão entre os artistas que tiveram esse destaque nas apresentações do estilista.
Um desfile ICÔNICO
Difícil escolher apenas um entre tantos já que Gaultier nos presenteou com centenas de momentos inesquecíveis ao longo desses 50 anos. Mas nós escolhemos como um desfile icônico o que ele apresentou na temporada de Verão 1994 que, caso fosse desfilado hoje, ainda seria considerado contemporâneo. A coleção se chama Les Tatouages e misturou África, Índia e referências tribais, clubbing, Joana d’Arc, formas do século XVIII e homens de saia (naquela época, em uma passarela de luxo, não eram comum). O casting tinha não modelos, pessoas tatuadas ou com tattoos e piercings falsos. “Uma visão surpreendente da harmonia intercultural” foi como o estilista descreveu esse show.
SUTIÃ CONE
Jean Paul Gaultier é o criador de uma das roupas mais icônicas da história da música: o sutiã de cone que Madonna usou durante a Blonde Ambition Tour, em 1990. O sutiã cone foi revisitado várias vezes por artistas como Lady Gaga e Katy Perry.
Figurinos
Quem viu, não esquece de Milla Jovovich com seu cabelo laranja e traje de faixas brancas em O Quinto Elemento, de Luc Besson. Milla tinha acabado de surgir e o filme foi um hit. Este foi um dos trabalhos mais memoráveis da carreira de Gaultier no cinema. É dele também o figurino de alguns filmes de Pedro Almodovar, como Kika, Má Educação e A Pele que Habito. Seu primeiro trabalho como figurinista foi para O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante, de Peter Greenaway, em 1989.
Brasil
Fã do Brasil, ele esteve no país algumas vezes, tanto a trabalho quanto de férias. Em 2011 ele foi ao Rio pra divulgar o documentário Jean Paul Gaultier – Quebrando as regras, dirigido pela sua amiga e ex-modelo Farida Khelfa. O filme teve pré-estreia no Festival de Cinema da cidade e ele aproveitou a ocasião para participar de um evento organizado pelo FFW, onde me concedeu uma entrevista ao vivo para uma plateia lotada.
Em sua mais recente visita, ele assinou fantasias para uma das alas da Portela no carnaval de 2019.
De quem ele gosta
“Rei Kawakubo, do Japão, meu ex-assistente Martin Margiela da Bélgica, Vivienne Westwood, da Inglaterra, e Rick Owens dos EUA. Como os visionários franceses que eu admirava quando era criança, esses designers internacionais abriram meus olhos para novos conceitos e idéias incríveis – e às vezes chocantes. Eles têm seu próprio mundo e sua própria identidade e fazem coisas que você não pode esperar de mais ninguém”.
Para finalizar, fique com uma dancinha irlandesa feita pela modelo Coco Rocha em um desfile de 2007 ♥…
E abaixo, o desfile de Verão 2014 com Rossy de Palma como jurada de um concurso de dança que tem também Coco Rocha impagável como John Travolta em Grease, ao som deYou’re the One That I Want; Karlie fazendo vogue, Hannelore Knuts dançando tango e Laís Ribeiro numa dança latina.