Desde os primórdios da humanidade, a indumentária – termo usado para caracterizar as roupas de um período antes da existência da moda – é usada como uma barreira física de proteção. Seja para proteger das intempéries climáticas, do frio ou do sol intenso, para evitar atritos ou mesmo melhorar a performance, como no caso das roupas e calçados esportivos.
No entanto, nos últimos anos, a ideia de roupas como artigos de proteção, quase como armaduras, parece estar ainda mais presente no imaginário da moda. A guerra na Ucrânia eclodiu no meio da semana de moda de Milão e se desdobrou ao longo da Paris Fashion Week de fevereiro, o que implica que foi rápido demais para se criar uma coleção integralmente pensada para refletir ou protestar sobre a guerra. Apesar disso, as armaduras já estavam no imaginário de Olivier Rousteing, da Balmain, que desfilou peças que pareciam trajes de defesa espaciais ou medievais, com placas de metal e inspirações militares. Também foi o caso de Maria Grazia Chiuri, que sobrepôs coletes e símbolos que remetem ao militarismo e ao streetwear nos tradicionais vestidos de renda românticos da Dior.
A tendência também aparece muito no streetwear. As peças utilitárias, com muitos bolsos como calças cargo ou coletes repletos de compartimentos também bebem muito do militarismo e da ideia de uma roupa que, acima de tudo, deve ser funcional e nos proteger. A Off-White apresenta um grande destaque nesse sentido, criando coletes e harnesses que se popularizaram no meio do streetwear. É o caso também de Matthew Williams com a sua Alyx e, principalmente, suas colaborações com a Nike, ambos bebendo da fonte de Helmut Lang, que já criava coletes nos anos 80 e 90.
Apesar disso, essa tendência não começa por aí. O Warcore, como tem sido chamado pelas subculturas que o praticam, eleva ao extremo a estética do militarismo e os adeptos saem às ruas basicamente como se estivessem preparados para uma guerra. Coturnos militares, calças cargo, bomber jackets, coletes com diversos bolsos, máscaras e balaclavas são parte do armário dessa subcultura, que relatam ser recebidos com olhares tortos e estranheza pelas pessoas na rua. Afinal, com níveis de violência cada vez mais altos ao redor do mundo, como você reagiria se visse uma pessoa na rua vestida “para o combate”? Esse estilo ainda levanta questões raciais: quem pode sair às ruas com roupas militares, rostos tampados e parecendo estar armado e ter o luxo de não ser – no mínimo – abordado pelas autoridades?
Essa nova onda de roupas como armadura pode ser entendida como uma resposta aos tempos difíceis que vivemos. “A pandemia teve todos os paralelos com uma guerra”, opina a especialista em tendências Iza Dezon. “Nós nos sentimos todos combatentes e sobreviventes individuais”. De fato, as roupas sendo novamente utilizadas como uma forma de proteção física ressurgiram no início da pandemia, quando diversos designers de moda começaram a reinterpretar os equipamentos e trajes de proteção através das roupas, com peças volumosas, infláveis e até com espinhos, que impediam de chegar perto.
“A gente vive uma época de batalhas anunciadas, sejam as lutas negras, trans, LGBTQIA+, a crise climática e tantas outras, e temos mais do que nunca, a sensação de estarmos sentindo isso na pele”, continua Dezon. Em tempos difíceis, as pessoas tendem a se vestir de forma mais imponente, para se sentirem mais poderosas e capazes de enfrentar os obstáculos.
Já o militarismo em si é mais antigo e sempre esteve presente na moda. Na verdade, grande parte do repertório da moda masculina descende diretamente dos uniformes militares, como as bomber jackets, os coturnos, calças cargo e trenchcoats – que significam, literalmente, casacos de trincheiras. Em entrevista ao WWD, Andrew Groves, professor de design de moda da Universidade de Westminster, em Londres, afirma que, essa associação do vestuário masculino ao militarismo e a funcionalidade permitiu que homens parecessem desinteressados em moda e reforçassem sua masculinidade ao longo das décadas.
Historicamente, referências aos trajes militares foram usadas de diversas formas. Após a 2ª Guerra Mundial, veteranos de guerra dos EUA continuaram usando seus trajes militares como uma forma de honrar sua história e participação. Por outro lado, durante a Guerra do Vietnã, o militarismo foi incorporado à moda como uma forma de subversão e protesto.
É importante lembrar que na modernidade não houve paz, mas sim uma marketização sobre o ideal de paz mundial. Vivemos diversas guerras no continente africano nas últimas décadas, na Síria, no Afeganistão, entre Israel e Palestina, e tantas outras. Portanto, é questionável pensar que a eclosão de um novo conflito tornaria mais vívida ou não a tendência de roupas como armadura ou do Warcore.
Peças como coturnos, estampas camufladas e tantos outros itens já são tão ligados à moda e receberam diversas reinterpretações ao longo da história, possivelmente tendo seu sentido tenha sido esvaziado. Isto é, usar peças inspiradas no militarismo hoje, pode dizer pouco sobre ideologias ou endossos e caracterizar movimentos puramente estéticos, ao contrário de décadas passadas, como na Guerra do Vietnã com os hippies, por exemplo.
A questão é que a ideia de combate, sobrevivência e distopias tem habitado nosso imaginário coletivo já há alguns anos e vestir-se para a luta parece nos deixar mais confiantes e prontos para enfrentar os obstáculos da modernidade.