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    Estilista Ale Valois fala sobre a relação da moda com cidadania e seu projeto Feito A Mana

    Por Pedro Batalha / Dendezeiro

    Muitas vezes observamos a moda cruzar caminhos com diversas áreas, das arte à tecnologia. Novas fibras, novas formas de expressão, desfiles, conceitos na criação das coleções, inspirações no mundo cotidiano. Contudo, existe uma temática de extrema importância que sustenta todos estes pilares, mas que raramente os vemos correlacionados: Moda e Cidadania.

    Entender como construir uma cadeia de produção, projetos, que tenham como base a cidadania e preservação dos direitos humanos, é algo que por muitos anos esteve em falta no mundo das grandes marcas de moda. Esse é um dos focos da estilista Ale Valois e conversamos com ela sobre essa relação.

    Pedro: Ale, me conta um pouco sobre você e o seu trabalho no mundo da moda.

    Começando pela minha formação acadêmica, eu fiz psicologia e na área da moda eu fiz muitos cursos técnicos. Eu fui construindo esse conhecimento através dos cursos, da observação e muitos estudos de campo. Apliquei pesquisas de diversas formas, sempre usando o viés da moda para entender de que maneira poderia trabalhar com os meus valores, com as minhas crenças, com as minhas vivências e levar esse o meu olhar através da roupa para o mundo. 

    Eu fui entendendo ao longo desses projetos que eu conseguia levar minhas crenças para dentro de um galpão de produção, na época que eu desenvolvia coleções para marcas e não assinava.  Eu fiz isso durante bastante tempo e levava sempre um conhecimento de como aproveitar todo material. Na época eu era bem mal vista, como se o que fazia fosse uma coisa pobre. Eu estou fora do trecho porque trabalhava muitas vezes com lixo e hoje é muito interessante olhar a valorização desses projetos assim, e muitas marcas às vezes não tem esse conhecimento, mas precisamos falar sobre isso

    Eu sou uma pessoa apaixonada pela moda: a silhueta, a vestimenta, o que ela representa. O porquê das pessoas se vestirem de determinadas maneiras em cada região do mundo? Porque se usa determinada fibra? Isso me trouxe sempre uma vontade de pesquisar e conhecer modelagens, que é o que eu amo trabalhar. Gosto de misturar técnicas e acabamentos, como a moulage na alta costura, para roupas do dia a dia. Tudo isso é Ale. 

    Dentro do universo da moda observamos constantemente algumas discussões sobre grandes empresas e sua cadeia de criação e produção. São recorrentes casos de trabalhos análogos à escravidão, racismo, machismo e LGBTQIA+fobia. Como você acredita que pequenos empreendedores de pequenas marcas podem modificar esse cenário?

    Essa discussão sobre a cadeia de criação e produção sempre existiu na verdade. Eu acho que a moda foi construída num momento de mudança que foi o pós-guerra e a partir daí começaram as produções em escala. Houve uma necessidade de que as coisas acontecessem dessa forma, para que os países se levantassem. Isso, claro, refletiu na moda também e na indústria de modo geral.

    Mas eu acredito que hoje temos condição de rever isso e acredito que as pequenas marcas, de pequenos empreendedores, precisam estudar muito. Precisam de consultorias e entender que o processo de produção sustentável deve ser alinhado com os Direitos Humanos. Esse pilar é fundamental para uma marca ser sustentável. Não basta ela dizer que ela não gera lixo, que ela faz alguma coisa com lixo. É necessário que as pequenas marcas realmente estudem e façam essa mudança de perspectiva da sua equipe toda. Não adianta ser uma estratégia de comunicação. Eu acho que é um caminho que nós temos obrigação de plantar.

    É preciso encontrar a sua própria estratégia para fazer isso e entender que não existe uma receita de bolo pronta. E eu acho que essas pequenas marcas muitas vezes vão fazendo muito intuitivamente, o que não é uma coisa que traz realmente resultados efetivos para a cadeia de produção, comercialização e uma série de outras relações que você vai construir dentro do seu universo, da sociedade, dentro do seu raio de atuação.

    Ah,  que não seja só uma vitrine, né? Mas que realmente seja de verdade. Eu acho que uma forma de modificar esse cenário é mudar completamente o padrão de conhecimento antigo da era industrial, do fordismo. Precisamos sair desse lugar, e adquirir conhecimento para poder levar adiante o que a gente acredita e tem certeza que é efetivo para mudar esse quadro.unnamed

    Na sua perspectiva, existe uma relação direta entre moda e cidadania? Como você enxerga esse pilar dentro do seu trabalho?

    Na minha perspectiva existe uma relação direta entre  moda e cidadania. Este é o meu pilar principal. Para mim, os direitos humanos são a base da vida em sociedade e como eu trabalho com a moda, não tem como fugir disso. Então, nós que temos uma marca, que somos uma marca, que desenvolvemos produtos, que promovemos ações interessantes, temos a obrigação de usar a moda para promover a cidadania.

    A moda provoca o desejo de vestir, da beleza, do cool, de tendência e muitas pessoas precisam da roupa, da silhueta, para se sentirem inseridas na sociedade. A roupa traz essa vontade de estar inserido num grupo, de fazer parte. Porém, a inserção das pessoas é um papel que eu acho que a moda não faz, ao contrário, a moda até hoje separa. Até mesmo quando uma marca se posiciona querendo promover algum tipo de grupo, que foi sempre segregado, muitas vezes ela não chega trazendo esse amparo para todos. As marcas sempre se posicionam de uma forma muito exclusiva: “eu tenho você não tem”, “eu sou porque eu visto isso”. Uma postura blasé, não acolhedora.

    Então, eu acredito que o acolhimento está diretamente ligado ao movimento de cidadania e direitos humanos. Eu atuo com costureiras já faz bastante tempo, mesmo antes da pandemia. Eu compro máquinas para minhas costureiras trabalharem nas suas casas. Algumas já têm suas máquinas, mas enfim, eu proporciono facilidade para que elas tenham suas máquinas dentro das suas casas e não precisem sair para trabalhar. Na maioria são mulheres mais velhas, que têm suas casas, que têm suas famílias ou não, e precisam trabalhar com tranquilidade. Eu acredito que é possível trabalhar dessa forma, de colaboração com a sociedade de alguma maneira para que a marca tenha esse pilar da cidadania e dos direitos humanos, se ela quiser tem um selo de sustentabilidade. E isso Ale tem.

    Quando falamos em sustentabilidade, geralmente associamos diretamente a uma melhor cadeia de produção, que menos gera agressões ao meio ambiente. Mas você acredita que essa relação de moda e cidadania também gera uma moda mais sustentável?

    Sim, porque parto do princípio do respeito por quem trabalha comigo, pelos colaboradores da marca e por quem usa a roupa. Se eu me preocupo com todas as pontas, com todas as relações humanas que eu tenho dentro do meu processo de produção, eu automaticamente vou gerar menos agressão ao meio ambiente. Não tem como respeitar o ser humano, respeitar a pessoa que está envolvida nesse processo, sem respeitar o meio ambiente. Para mim, é o pilar da sustentabilidade. 

    A minha bíblia se chama Cradle-to-Cradle e ele fala da cadeia de produção e da nossa responsabilidade nesse processo. Se eu for passar o meu resíduo para outra pessoa ou para um catador, ou para uma outra marca ou para um projeto, é minha responsabilidade saber o que vai ser feito e eu preciso verificar isso. Não posso deixar isso para lá, entendeu? O livro fala que esse é um processo completamente circular e ilimitado e quando você entra nele, você cria e recicla ilimitadamente.

    Tudo o que transborda da minha cadeia e do meu processo de produção não é lixo. Ao contrário, é insumo para qualquer outra coisa que eu queira ou para qualquer outro projeto. Isso me faz pensar também em como a moda  tem inúmeras possibilidades de gerar novos produtos e o quanto isso pode trazer benefício pra quem está querendo aprender, por exemplo.

    Por isso que eu criei o Feito A Mana que é um projeto meu, de capacitação e de produtos sociais. E nessa proposta, além de promover a cadeia circular de todos os meus transbordes, insumos, lixos e resíduos, eu consigo aplicar a cidadania e os direitos humanos para pessoas que querem entrar no mundo de produção têxtil e aprender sobre bordado, costura, corte, modelagem, acabamentos. Eu senti a necessidade de criar um projeto que eu acredito que seja completo. Nesse sentido, eu desconheço outro. Eu  já apresentei esse projeto para várias marcas, mas hoje me parece que já estão me copiando.

    Quais projetos atualmente você participa ou organiza que geram impactos sociais dentro da sua cadeia e fora dela?

    O Feito A Mana é um projeto que foi criado para facilitar a capacitação de quem está em busca de aprendizado, de quem está iniciando, de quem precisa de uma referência, quem precisa de experiência ou quem não tem experiência nenhuma mas quer entrar no processo de produção de elaboração de alguma forma. E no projeto eu já trago a noção de como aproveitar e é muito difícil para as marcas grandes fazerem isso com centenas de peças cortadas. Então, o ideal seria que essas marcas se associassem a pequenos projetos e fossem diluindo seus resíduos nesses pequenos projetos, essa seria uma solução. Todos os insumos da Ale Valois vão pro Feito Amana. Hoje já recebemos doações para elaborar os produtos sociais, temos a sacola que é incrível. Temos também as touquinhas de tigelas, copos, jarras. 

    Atualmente eu atuo dentro da ocupação Nove de Julho, que é uma das unidades do movimento de moradia de São Paulo. O Feito A Mana está dentro da ocupação Nove de Julho. E ali, trazemos oportunidades, não só conhecimento de técnicas, mas de experiência. Trazemos a possibilidade de desenvolver cada vez mais as habilidades de quem está entrando no mercado e também referências para trabalhos futuros.

    Eu tenho um exemplo de uma moça que quer ser costureira e ela conseguiu comprar uma máquina, mas ela trabalha num restaurante. Então ela faz as peças do projeto nas horas vagas. Aí a gente vai atuando de acordo com o que dá, da forma que dá, na hora que dá. Então o Feito A Mana traz inclusive o entendimento de que o horário dela tem que ser respeitado, que ela tem um valor a ser pago, que a hora dela custa tanto. Sustentabilidade sem Direitos Humanos, sem respeito, não existe.

    Observando o cenário de moda atual, qual avanço você acredita ser mais importante para a indústria dar atenção nesse momento?

    Olha primeiro, eu acho que a indústria deveria, na verdade, não só a indústria, mas eu acho que a moda deveria abrir os olhos para além da divulgação. Porque ela quer entregar uma imagem de sustentável e de que tá fazendo alguma coisa pelo planeta. Porque mesmo que a gente faça de verdade, é muito pouco. É um trabalho de formiguinha e eu acho que é um trabalho de todos.

    Não adianta postar na rede social, falar bonito, mostrar coisa bacana. É um esforço diário e precisamos estar atentos a cada detalhe do processo de produção e procurar saber de que forma podemos colaborar.  Se uma marca muito grande não tem condição de criar uma Feito A Mana, que é o que eu considero como ideal, pode criar algo que esteja dentro do contexto dela, que permita colaborar com pequenos projetos. É um comprometimento com o que realmente é necessário, com o que realmente é possível, com o que realmente pode ser feito com responsabilidade, não para gerar menos impacto negativo e sim para gerar impacto positivo. Essa visão é fundamental. Eu acredito que esse é o caminho.unnamed

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