Esses dias assisti Escravidão – Século XXI, série documental de cinco episódios que está sendo exibida pela HBO, com direção de Bruno Barreto.
Este ano foi o 133º aniversário da Lei Áurea, decreto outorgado pela Princesa Isabel que aboliu a escravatura em todo território nacional, mas a verdade é que a cultura da escravidão persiste e está estruturada em muitas áreas de nossas vidas: muito do que comemos e do que vestimos, por exemplo, podem ter as mãos de pessoas exploradas e que trabalham sob ameaça e violência física e psicológica.
Ao longo dos cinco episódios, a produção mostra vítimas da escravidão contemporânea e suas diversas facetas e níveis de exploração. Conhecemos a história inacreditável de Gabriela; acompanhamos a origem do aliciamento de costureiros bolivianos que vêm parar no Brasil e se vêem presos em oficinas clandestinas; conhecemos a trajetória de Zé Pereira, trabalhador rural que sobreviveu a uma tentativa de assassinato na fazenda onde era mantido e sua denúncia foi primordial para a mudança do código penal no Brasil.
Seu caso aconteceu no início dos anos 1990 e foi parar na ONU, quando o Brasil foi o primeiro país a assumir formas contemporâneas de escravidão. Ainda assim, levou 10 anos para que as leis fossem mudadas de fato – estamos falando de 2002 – e para que Zé Pereira fosse indenizado (o que ele recebeu, de verdade, não paga nem um segundo do que ele passou).
Em uma entrevista, Barreto diz que um dos desafios era fazer com que empresas e pessoas denunciadas por exploração dessem seus depoimentos. “Apenas a Zara falou”, diz Bruno.
Neste episódio em que a indústria do fast fashion é abordada, entendemos todo o processo de terceirização e quarteirização das oficinas de costura, escolhidas sempre pelo menor preço, e vemos como cidadãos de outros países, em busca de uma melhora de vida, acabam caindo nessa cilada.
Tive acesso a um estudo riquíssimo chamado Trabalho Escravo na Indústria da Moda: o Sistema do Suor Como Expressão do Tráfico de Pessoas*, de Renato Bignami. Ele é auditor-fiscal do trabalho, Mestre em Direito pela USP e Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade Complutense de Madri – Renato é também um dos entrevistados da série.
Ele escreve que “neste sistema, a produção está toda fracionada em uma cadeia de pequenas e microempresas que concorrem entre si mesmas, derrubando o valor do trabalho e ocasionando as péssimas condições no ambiente laboral”. E observa que “as variantes posteriores do prêt-à-porter, como o recente fast fashion, nada fizeram além de acelerar e baratear ainda mais os processos produtivos, aumentando as camadas de subcontratação, o fosso social entre elas e pressionando por mais flexibilidade no ambiente de trabalho. Ao lado desse processo de superflexibilização, está o aumento dos fluxos migratórios, experimentado desde o século XIX, fornecendo mão de obra vulnerável e abundante para essa crescente indústria”.
Por isso a pergunta que o Fashion Revolution faz é tão importante: quem fez as minhas roupas? É responsabilidade nossa enquanto consumidor questionar, pois o poder da escolha está nas nossas mãos. Apenas enquanto coletivo podemos exercer uma pressão que pode causar mudança.
” O primeiro passo para trazer a sustentabilidade para a moda, é ter a clareza de que por trás das roupas existem pessoas. De acordo com a ABIT, o Brasil é o quarto maior produtor de roupas do mundo, gerando 8 milhões de empregos diretos e indiretos, sendo 75% da mão de obra composta de mulheres”, diz Fernanda Simon, diretora executiva do Fashion Revolution. “Mesmo representando uma expressiva força geradora de empregos, o setor ainda não garante direitos fundamentais aos trabalhadores, muitos ainda trabalham informalmente e alguns até em situação de trabalho análogo ao escravo”.
No fim, o trabalho escravo é fruto de um capitalismo selvagem, que vem sendo cada vez mais questionado (inclusive pelo próprio Fernando Henrique Cardoso no documentário). A destruição ambiental e a injustiça social trazem cada vez mais objeções ao modelo atual e pedem uma mudança estrutural urgente.
Nós, que trabalhamos na indústria da moda, podemos atuar de diversas maneiras para interromper essa prática. Tudo começa com um conhecimento maior sobre o assunto. Então podemos usar nossas redes, conexões e nossa voz para espalhar esse aprendizado e ajudar na conscientização de cada vez mais pessoas. É uma responsabilidade coletiva.
*Um dos capítulos do livro Trabalho Escravo Contemporâneo, editado pela Associação dos Juízes do Trabalho