Por Guilherme Meneghetti
“O padrão já foi quebrado”, disse Alexandre Herchcovitch em entrevista ao FFW sobre o casting do desfile da À La Garçonne. “Eu quero pessoas, muito mais do que modelos, personalidades, atitudes. Mostrar que aquilo que você faz é pra qualquer pessoa, que todo mundo é igual”. Segundo o estilista, este é um momento bom para todo mundo – para a moda, para os estilistas, para as pessoas. Ele acredita que, na verdade, a heterogeneidade do casting de um desfile torna-se homogênea, pois a diversidade encapsula essa mensagem. “Cada hora é um tipo de pessoa, então, de certa forma, é possível que isso fique com uma só ‘cara’”.
Perfis que se aproximam de pessoas reais também é uma das características dos castings da Cotton Project. “Procuramos um sweet spot que foca no equilíbrio entre a veracidade do discurso modelo/roupa e a padronagem das medidas do corpo com nossas peças pilotos. Modelos mais próximos das pessoas reais valorizam o discurso”, explica Rafael Varandas, diretor criativo da marca.
De fato, já foi dada a largada para a falência do padrão eurocêntrico no mundo – não só no Brasil, como também nas semanas de moda internacionais, sobretudo as de Nova York e Londres. Ainda que publicações independentes dos anos 90, como i-D e Dazed, usam o street casting desde seus primeiros números, o perfil de modelo de passarela sempre foi muito uniforme e com padrões que acabaram praticamente virando regras. “O mundo está cada vez mais desconstruído e aberto. Por mais que seja a ‘passo de formiga’, está acontecendo. Querendo ou não, todas as pessoas, de todas as formas, corpos e cores compram roupas e consomem produtos”, conta Yollanda Maakeo, modelo da agência de street casting Squad, que desfilou nesta temporada para À La Garçonne, Cotton Project e Beira.
A Squad tem ocupado este espaço no Brasil, não apenas agenciando não-modelos como também os incentivando a manter a própria personalidade e seus projetos pessoais. Bailarinos, DJs, costureiros, poetas cruzaram as passarelas do SPFW.
O próprio Yollanda, por exemplo, é artista performático. Ele pratica danças de contorção e a japonesa Butô, “que é a expressão dos sentimentos negativos”. Trabalhar como modelo é uma ramificação de sua performance. “É mais uma possibilidade que eu tenho com meu corpo, de agir distante do meu eu; é outra forma de desconstruir a minha imagem e reconstruí-la de alguma maneira – conforme o cliente quer ou como a foto está pedindo”, explica, com seu jeito sério e delicado.
Respeitar os modelos do jeito que são diz respeito sobretudo à aparência. Yollanda sempre muda o seu visual e afirma que nunca o criticaram por isso – ao contrário, o incentivam. “Vivo fazendo tatuagem, mudando meu cabelo, e em nenhuma agência isso é aceito porque tem essa coisa de ter aquele padrão do book, com determinadas medidas de corpo e altura. Ainda existe essa ‘ditadura’ do book, que, se você quiser construir uma carreira de modelo, terá de seguir”, explica, complementando que a Squad vai contra esses princípios. “Lá o nosso book é como o nosso Instagram e eles adoram quando a gente muda o visual. É maravilhoso uma agência ter essa abertura para deixar o modelo ser quem ele é, acreditando que os trabalhos vão aparecer simplesmente por nós estarmos nos apresentando como somos”.
Davi Von Giller, curitibano também agenciado pela Squad, diz: “É uma ideia que já está dando certo e vai continuar, isso é só o começo. Eles veem que não sou apenas mais um corpo, me tratam como um ser humano, um amigo. A Squad inverteu o princípio das agências convencionais: em vez de o modelo se adequar à marca, é a marca que se encontra com a personalidade do modelo”.
Davi é artista, costureiro, cabeleireiro e manicure. Possui unhas “stiletto” – compridas e pontiagudas. “São de acrílico, mas eu que moldei, lixei e etc”, demonstra. Suas unhas não incomodaram as marcas para as quais desfilou (João Pimenta e À La Garçonne nesta temporada, e Just Kids no ano passado). “É algo muito legal de se ver, porque nem as marcas estão querendo moldar os modelos, tampouco as agências. Isso é muito bom, muito bonito”.
A maioria dos modelos é abordada pelo Instagram, porém contatos também ajudam. Foi através do Davi que Alina chegou à Squad. A primeira vez que ele a viu foi na capa do álbum de um amigo DJ, achou-a maravilhosa e passou a segui-la no Instagram – ela também deu follow nele e daí surgiu um relacionamento de amor e amizade via Internet. “Ela é uma pessoa sensacional, incrível, maravilhosa, meu goal de pessoa – eu nem sei se ela é um ser humano (risos)”, brinca.
Alina Dörzbacher é de Rio Brilhante, Mato Grosso, cidade pequena com cerca de 30 mil habitantes. Ela sempre teve vontade de desbravar o Brasil e São Paulo foi seu primeiro destino. “Eu não tinha esperança de nada, só queria me divertir e procurar a felicidade – e encontrei!”, conta com seus longos cabelos loiros, voz serena e olhar que transmite tranquilidade. Alina tem um look retrô – um mix de Marianne Faithfull e Pamela Courson –, e também desfilou para À La Garçonne. Quando Davi soube que ela iria para São Paulo, imediatamente pensou em levá-la para Squad. “Você tem que ganhar dinheiro sendo linda e você mesma, por ter uma personalidade única e esse cabelo maravilhoso”.
Poetisa, Alina participa do TRANSarau, evento gratuito que reúne artistas LGBTQI+ (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, intersexuais, travestis, transgêneros, queers, não-binários e simpatizantes). A última edição ocorreu sábado (18.03), no Largo do Arouche (centro da capital paulista), com o lançamento do livro Antologia Trans, uma compilação com o trabalho de 30 poetas trans, travestis e não-binários, além do show de MC Linn da Quebrada.
Para ela, esse momento da diversidade veio para ficar. “Sou muito feliz do jeito que sou. A sociedade impõe que você se encaixe nos padrões – ou você é macho, ou você é fêmea; não existem intermédios. Mas estou aqui para mudar isso, esse é o meu papel”.
A diversidade de pessoas que ocupam a mídia é uma resistência necessária que promove a representatividade. É isso que o modelo haitiano Woolmay Mayden quer: representar o seu país em sua primeira semana de moda. “Um haitiano no SPFW… Estou muito feliz!”, comemora com seu sotaque carregado. “Todo mundo fala que os haitianos vêm aqui para ‘roubar’ trabalhos. Eu tenho que mostrar para todos que a gente não está aqui por causa do terremoto de 2010 ou coisas assim. Há pessoas que vêm aqui apenas pra conseguir uma vida melhor”, desabafa.
Ele chegou a São Paulo ano passado, depois de ficar seis meses em Joinville, Santa Catarina. Mudar de cidade foi promissor. Além de alavancar a carreira de modelo (à princípio queria ser ator), ele também se identificou muito com SP. “É uma cidade muito bonita. À noite parece outro lugar. Às vezes, quando ando de metrô, fico observando a cidade pela janela e, nossa, é muito maravilhoso. Eu amo São Paulo!”. Desde que chegou ao Brasil, vive como modelo. Começou como independente até a Squad abordá-lo via Instagram.
Tanto em São Paulo como no Haiti, país cuja população é majoritariamente negra, ele confessa ter sofrido preconceito. “Como eu sou muito preto, na minha escola havia meninos com a pele mais clara que a minha, embora também fossem negros, e aí me chamavam de feio por causa da minha cor. Diziam: ‘você quer ser modelo? Só na África irá conseguir emprego’”.
Em São Paulo, Woolmay disse ter ido a lugares onde ouviu comentários como “o que ele está fazendo aqui?” ou “olha, como ele é diferente”. “Certa vez, enquanto eu andava na avenida Paulista, passava ao meu lado um grupo de crianças de uma escola particular que estava sendo guiado pela professora. Eles me olharam de uma maneira estranha, até que a professora disse ‘calma, meninos. Não tenham medo dele, ele não vai fazer nada’. Eu não sou um demônio, sabe? É apenas a minha cor. É muito pesado. Mas é preciso aprender a viver com essas coisas”.
Woolmay acredita que ainda faltam muitos negros nas passarelas. “A maioria das marcas tem 4, 5 modelos negros, no máximo. É como se fosse um ‘pacote’ para compor o casting. E, sinceramente, é fato: muitas marcas não nos querem”. É o que pensam também Saulo Dot, Gabriel Savage, Zayon Silva e Heloisa Muniz – essa última, quem abriu o desfile da À La Garçonne e também participou de um shooting na mais recente edição da FFWMAG. Foi a primeira vez que eles desfilaram no SPFW, todos pela Squad, com exceção de Zayon, que é da Oxygen Models.
Por outro lado, John Barros, que entrou para a Way este ano, acredita que há um caminho mais aberto hoje em dia. “Estou ficando mais comercial agora. Tenho feito mais editoriais e campanhas. Parece que os meus dreads estão abrindo as portas”, conta.