Podemos dizer que esta temporada foi atípica. Pela primeira vez, as marcas se dividiram em duas estações: algumas apresentaram inverno (para começar a vender já) enquanto outras optaram pelo verão (disponível para venda aos consumidores a partir de agosto).
Desde que o see now buy now surgiu no mercado, tem sido abraçado por muitas grifes, mas envolto por algumas questões. O principal ponto é: o que serve para um, pode não servir igualmente para o outro. As semanas de moda, seja em São Paulo ou Paris, contemplam marcas de tamanhos, alcance e necessidades variadas. E se num primeiro momento pairava uma incerteza do que iria acontecer (preciso me adaptar?), parece que agora, com as visões mais claras cada um continua a seguir o seu caminho. E essa parece ser a única receita que pode levar ao sucesso: cada grife tem que saber e ser fiel ao que lhe serve melhor.
O SPFWN45 foi uma prova disso. O calendário foi dividido entre apresentações de inverno e verão, obviamente escolhidos pelas próprias marcas. Poderia ter sido uma semana confusa, de criação contida pela insegurança destes tempos de crise economica, numa suposta necessidade de atender o apelo comercial. Assim como provocava o tema do evento Pow! Explosão Criativa, o que ocorreu foi exatamente o contrário: apresentações marcantes como moda e experiências emocionantes enquanto desfile. Foi farto tanto para o público especializado quanto para os outros convidados.
Em que outro lugar as pessoas veriam Anitta cantar tão de perto? Cortesia da Água de Coco, que abriu esta edição com a cantora mais pop do Brasil na passarela. Pela primeira vez a marca abre espaço para inserir mulheres “fora do padrão” em sua passarela, com a participação de Lola e Bruna.
Foi um começo vibrante, seguido por um dos momentos mais emocionantes da semana: o desfile do projeto Ponto Firme, que o designer Gustavo Silvestre faz com um grupo de detentos da Penitenciária Adriano Marrey. Gustavo ensina os rapazes a fazer crochê e, de ponto em ponto, eles criaram uma coleção. Muito louco pensar que um trabalho produzido sob uma disciplina rigorosa de tempo (apenas dois encontros por semana) rendeu um dos desfiles mais modernos não apenas em imagem de moda, mas de seu modus operandi: colaboração, doação de tempo e troca de talentos por um bem maior e coletivo. Esse parece ser o caminho para o futuro. No dia seguinte, o esperto Arlindo Grund já usava uma das jaquetas desfiladas (abaixo).
Outro que emocionou foi Ronaldo Fraga, que levou o público às lágrimas com seus sonhos de jardins plantados em uma Mariana pós tragédia. Além dos lindos vestidos, duas coisas deram um colorido muito especial à apresentação: os bordados coloridos em folhas secas de Clarice Borian (entre os acessórios mais lindos da semana) e a música ao vivo de Lívia Nestrovski e Fred Ferreira (tem pra baixar nos apps de música!). Não foi nada fácil se segurar… As pessoas deixaram a sala de desfiles com o coração aquecido.
Assim também aconteceu com a apresentação de Fernanda Yamamoto, que fez uma coleção inspirada pela comunidade de ascendência japonesa Yuba, do interior de São Paulo. Sem circulação de dinheiro, vive-se do trabalho da roça, mas ao cair da tarde é a prática de dança, música, teatro, haikai e bordado que entra em cena. Sua coleção foi de ver e sentir. Quanta delicadeza – sem falar no trabalho técnico de Fernanda e sua estética primorosa, cada vez mais especial.
A estreia de quatro marcas injetaram frescor no calendário que busca, com sucesso, se renovar: Beira, Handred, João Pimenta e Modem, todas empresas pequenas e independentes, crescendo no ritmo adequado a cada uma delas. Em comum, um olhar próprio sobre a moda, identidade e um conhecimento do que se quer fazer e para quem quer vender.
A Beira com seu rigor de cores e formas traduzido em peças que estão além do gênero e que são feitas para durar muito mais do que um par de estações. A estilista Lívia Campos não vende um estilo de roupa e sim um estilo de vida, proposta parecida com a da Handred, de André Namitala com sua concepção easy, unissex e de uma elegância atemporal.
A Modem vem evoluindo no trabalho que Sam Santos e André Boffano chamam de organic clean para traduzir a marca. A Modem lida com formas e cores de uma maneira própria e com apelo comercial sem perder de vista seus desejos como estilistas e amantes de moda.
E por fim, João Pimenta, que aplicou seu conhecimento e visão estética pela primeira vez em uma coleção feminina. Inspirado pelo universo rural, ele trouxe um elemento que sempre soube trabalhar tão bem: a dualidade – entre feminino e masculino, bruto e suave, simples e sofisticado.
Do outro lado, as marcas de moda praia são sempre uma força à parte, mostrando cada vez mais a evolução desse segmento nas nossas vidas, expandindo sua gama de produtos para além de praias, piscinas e barcos… Da coleção chiquérrima de Lenny Niemeyer ao frescor bem humorado da Salinas (o que eram as dançarinas que abriram o desfile? <3), há muito mais entre sol e mar do que imagina nossa vã filosofia.
Falando em diversão, a Amapô reafirma a liberdade criativa como sua principal ferramenta de trabalho (e de encantamento). Carô Gold e Pitty Talliani se inspiraram nelas próprias e em sua turma – só que há 10 anos. O que se viu na passarela foram looks únicos, cada um com um estilo, uma verdade, uma técnica, tecido e trabalho. Ilustração, patchwork, upcycling, lavagens no jeans, formas tridimensionais aliados a um trabalho espetacular do beauty artist Lau Neves, esquentaram o salão de baile da União Fraterna. Tudo embalado pela veia pop das meninas e sua capacidade e coragem de fazer tudo tão diferente, tão único, tão a cara delas.
Essa diversidade, de certa maneira, marcou esta edição do SPFW. O movimento por uma passarela mais diversa já vem acontecendo não é de agora e tem ficado cada vez mais forte. A Memo, em parceria com a Isolda, transformou seu desfile em uma batalha de dança com mulheres incríveis com total controle sobre o corpo, misturando vogue com street dance. A UMA teve origens e ancestralidade como tema, celebrando a mistura de raças que é o Brasil.
Um novo sentido para a vida surgiu na passarela. Seja ela uma outra alternativa, como vimos nos desfiles de Yamamoto, Pimenta e Cotton Project, que também fugiu da cidade para o campo, longe da constante pressão e falta de tempo que vivemos hoje. Ou do trabalho constante que a Osklen faz para mostrar que sim, é possível, criar, produzir e consumir de uma maneira muito mais adequada ao mundo hoje e que a mudança não está lá fora, está aqui dentro. Do cansaço, novos caminhos brotaram e enquanto coletivo o todo se fortaleceu.