A temporada de Verão 2020 começa nesta quarta (04.09) em Nova York em meio a um momento tumultuado. Em toda a sua história, este é o período em que as semanas de moda estão sendo mais questionadas, criticadas e empurradas a uma evolução. Como uma indústria que gera cerca de €1.5 trilhões por ano globalmente, a moda nunca esteve tão envolvida em questões políticas, sociais e ambientais.
Para começar, Nova York vive dois momentos paralelamente: um de renascimento, com a entrada de Tom Ford na presidência do CFDA, mexendo no calendário e trabalhando em uma curadoria de marcas mais apropriada para o evento. Ao mesmo tempo, passa por uma fase conturbada por conta de seu novo espaço oficial, o The Shed, que integra o Hudson Yards, o projeto imobiliário mais caro da história americana, com um custo de US$ 25 bilhões. Por trás desse empreendimento está Stephen Ross, que vem a ser um dos maiores contribuintes das campanhas de Trump – ele inclusive tem ajudado a levantar verba para a campanha de sua reeleição que, em apenas um trimestre, já arrecadou mais de US$ 100 milhões.
Muitos designers, como Prabal Gurung, estavam com seus desfiles marcados para acontecer no Shed, mas ao saberem da ligação com o atual presidente americano, optaram por cancelar e mostrar em outro local. A Helmut Lang manteve sua apresentação no local e muitos jornalistas já avisaram que não vão. Em resposta, o espaço divulgou uma nota dizendo ser “totalmente independente e não pertencente ou controlado por qualquer entidade privada ou com fins lucrativos”.
Em um excelente texto para o BoF, o jornalista Phillip Picardi, questiona a falta de bom senso e a ganância da indústria: “Os designers mais influentes de Nova York, de Prabal Gurung a Michael Kors, de Tom Ford a Tory Burch, expressaram e materializaram seu apoio às causas que Trump pretende enterrar a cada semana. Então, como poderia o futuro lar da Semana da Moda de Nova York estar na cama com a subscrição financeira do presidente Donald Trump?”. Essa é mesmo uma das questões que a moda terá que encarar nesse novo momento: há uma necessidade de coerência entre pensamento e atitude.
É o que as ativistas do Extinction Rebellion estão cobrando, porem de um jeito radical: elas querem acabar com a London Fashion Week, que começa dia 13 de setembro. “A moda deveria ser um marco cultural de nossos tempos, e ainda assim adere a um sistema arcaico e sazonal, lançando novidades sem piedade em tempos de emergência”, escreveram em seu perfil no Instagram. O grupo ainda declarou que está preparando um funeral da LFW para o dia 17 de setembro, convidando todos a presenciarem a morte de um sistema e o renascimento de outro modus operandi.
A LFW não vai fechar nem acabar. Caroline Rush, CEO do British Fashion Council, disse que acredita que, mais que qualquer outra capital, “Londres tem a oportunidade de integrar uma mudança cultural em torno da sustentabilidade que tem como principal núcleo a criatividade”. A Inglaterra é e sempre foi um celeiro de talentos instigantes e impressionantes que ajudam a quebrar barreiras em termos de estilo, construção de roupas e imagem de moda. Pense nas contribuições de alguns de seus maiores nomes: Vivienne Westwood, John Galliano, Alexander McQueen, Stella McCartney, Craig Green, Christopher Bailey, Phoebe Philo, Kim Jones…
Orsola de Castro, co-fundadora do Fashion Revolution, escreveu um texto trazendo um outro ponto de vista, ainda que compartilhando do mesmo sentimento do Extinction Rebellion. “A transformação radical implica que todos temos que trabalhar juntos para fazer alterações. Isso inclui colaboração multidisciplinar e multiplataforma entre todas as principais semanas internacionais de moda do mundo para evitar duplicação, reduzir viagens e minimizar seu impacto coletivo e oneroso, além observar as semanas de moda locais menores com uma nova perspectiva”, disse. “A melhor opção é urgentemente redesenhá-las e atualizá-las para se tornarem o que a moda precisa ser, e a moda precisa ser ética e sustentável”.
Um dessas mudanças coletivas é o Fashion Pact, encomendado pelo presidente francês Emmanuel Macron ao CEO do grupo Kering, François Pinault. Nele, 32 marcas (de Zara a Chanel) assinaram um pacto de sustentabilidade, uma iniciativa inédita que consiste em um conjunto de objetivos compartilhados para reduzir seu impacto ambiental.
Porém, quem tomou a frente nessa ressignificação das semanas de moda não foi Londres nem Paris, mas a Suécia. Primeiro porque o país tem lá sua vocação para vanguarda e segundo, porque a representação que eles têm na moda (muito inferior às principais quatro capitais) permite que se tome uma atitude como essa. A decisão também possibilita que a Stockholm Fashion Week repense seu formato não apenas pensando na sustentabilidade, mas também na sua relevância, já que as grifes locais acabam preferindo participar da Copenhagen Fashion Week, no país vizinho.
Vale pontuar que as semanas de moda são terrenos férteis para a criação e o desenvolvimento da moda no mundo. Um desfile pode ainda ser a mais viva e bela maneira de encantar, e não apenas àqueles que assistem in loco. A questão não é acabar com o desfile, mas como fazê-lo levando em conta as conversas e necessidades atuais, otimizando a produção e evitando desperdícios.
Outra questão é: como quebrar a barreira de exclusividade que é inexoravelmente parte de um desfile de moda, já que esses eventos sempre foram destinados a imprensa, compradores, clientes e celebridades?
Em sua recente visita ao Brasil, Olivier Rousteing, diretor criativo da Balmain, disse que o formato dos desfiles está ultrapassado. “Vejo os desfiles como shows de rock, e talvez uma fórmula seja passar de 500 para 10.000 convidados, e quem sabe fazer uma turnê mundial, em várias capitais. O impacto seria muito maior”, disse em uma entrevista para a revista Veja.
Rousteing certamente tem uma ótima ideia, mas estamos aqui falando de uma marca tradicional francesa com caixa pra bancar um projeto desses. O que vale aqui é que ele encontrou, para o seu segmento e tamanho de marca, uma fórmula que pode dar muito certo e arejar e expandir o que significa fazer um desfile hoje.
Então não é apenas uma questão de se acabar com esse tipo de apresentação, mas de olhar sob outras perspectivas. Em 2016, Kanye West lotou o Madison Square Garden, em Nova York, para o lançamento do álbum The Life of Pablo e da coleção Yeezy Season 3.
Rihanna também anunciou que está trabalhando no desfile mais incrível e enérgico que a gente já viu – e que será transmitido depois pela Amazon Prime. O show de Beyoncé, Homecoming, exibido pela Netflix, não deixa de ser um desfile cápsula da Balmain que, por sua vez, entra no mundo do entretenimento pela porta da frente, desbravando outras áreas.
Portanto, da junção do desfile com shows ou danças, pode surgir outros formatos eficientes. O show Electra, de Alice Caymmi, poderia ter sido também um desfile de Alexandre Herchcovitch, que assinou o figurino. Por que não?
Mas, como nada é uma rua de uma via só, eventos grandiosos como os mencionados acima são também altamente custosos e muito provavelmente, grandes geradores de lixo. Essa conta é importante ser feita, incluindo procedimentos de produção que levem em consideração a questão do desperdício (não faça como a Saint Laurent!)
Quem também está apostando em uma mudança de formato é a designer Anya Hindmarch. Ela tem criado locais de experiência abertos ao público mediante pagamento de um ingresso no valor de 12 libras (aprox. R$ 60). Os eventos, que sã uma mistura de lançamento de coleção com exposição interativa, esgotam, recebendo até quatro mil pessoas durante seus dias de funcionamento. “Nós realmente queríamos nos afastar do desfile de moda tradicional, que era muito para o público voltado para o setor, e abri-lo à indústria e aos nossos clientes. Parece mais moderno”, disse.
Assim, a designer ainda é parte do calendário oficial da semana de moda de Londres, mas escolhe outra maneira de dialogar com seu consumidor, trazendo ele, literalmente, mais para perto.
“As marcas na vanguarda das tendências de luxo e moda mudaram a maneira como apresentam suas novas coleções, usando formatos que levam os consumidores a desempenhar um papel mais importante e ativo”, afirma Luca Solca, chefe de pesquisa de artigos de luxo do escritório Bernstein.
Diversidade é outro assunto fundamental para a evolução da moda. Se até pouco tempo atrás, apenas um perfil era representado na passarela e na publicidade em geral, hoje vemos modelos e não modelos de etnias, gêneros e corpos diversos – ainda que o padrão branco-loiro-magro seja dominante. Mas é alentador ver marcas como Telfar e Pyer Moss ganhando a cena principal na semana de moda de Nova York e o jovem designer sul-africano Thebe Magugu vencendo o LVMH Prize, todos profissionais negros. A forma como eles (e muitos outros ) vêem o mundo e entendem a moda está alinhada com os novos valores que surgem e que devem guiar a indústria daqui para frente.
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